segunda-feira, 1 de julho de 2013

A vida








Maria do Rosário estava apaixonada, nunca se sentiu assim, uma doçura desinquieta, um formigueiro na barriga, um acelerar no coração.

Já muitas vezes desejou e se sentiu atraída por rapazes,  ia com eles no sentido e adormecia com uma humidade, lascívia e confortante, mas agora era diferente, sonhava com um de mãos dadas, pensava em passeios à beira mar, olhos nos olhos, suspiros doces, beijos gordos e molhados, agora era um amor diferente, preenchia o corpo, alimentava a alma e dava sentido à vida.
Agora, sabia ela, era amor de verdade.

Conheceu-o, por acaso, é daquelas coisas que acontecem, deve ser o destino. Foi na casa da Margarida, num fim de tarde que prometia mas, de repente, começou a chover intensamente. O boletim meteorológico já a tinha avisado mas, como sempre, não ligou.

Ele estava lá, era primo do marido da amiga.

Prendeu-lhe os olhos, percorreu-lhe o corpo, sentiu-lhe o cheiro, tomou conta do seu querer. Queria falar mas ficou sem graça, aparvalhada.

-Que se passa rapariga, perguntou Margarida. Nunca te vi, assim, tão calada!

-Desculpa amiga, sussurrou Maria do Rosário, mas há momentos de magia e até as mais tagarelas, como eu, se deixam prender.

Depois arrependeu-se de ter falado, corou, gaguejou e foi até à janela fingindo ir espreitar a chuva.

Mário, assim se chamava o Apolo, percebeu o encabulamento da rapariga, já era normal causar esse enlevo nas mulheres.
E gostava!

Mas esta parecia diferente, não foi só físico, sentiu magia, uma atracção feita do desejo da presença, de gosto pelo olhar e do prazer pelo estar. 

Era linda, assim lhe pareceu, olhos que brilhavam, intensamente, numa cor indefinida,  rosto emoldurado por fartos  caracóis negros, lábios maduros e um corpo com tudo no sitio certo e nas quantidades devidas. Deus, quando a concebeu, não estava de férias, redundante, mas graças a Deus!

A tarde ia caindo e a chuva parecia querer continuar, eles bem avisaram!  Mário aproveitou para perguntar:

-Maria do Rosário, julgo ser esse o teu nome, posso deixar-te em qualquer lado? Está o chover e eu tenho o carro mesmo defronte da porta!

A rapariga tremeu, sentia algo a trepar pelas pernas, jura que um frio lhe percorreu a espinha e se foi diluir, num doce calor, num sítio que não era capaz de dizer.
Quis falar - muito obrigado não vale a pena! - mas o desejo deu-lhe uma martelada na cabeça e apenas lhe saiu:

-Muito obrigado mas vou aceitar, nem guarda-chuva tenho!


*****

Começou assim, como a nascente de um regato, timidamente, depois tonou-se firme, intenso e apaixonado.
Correram todos os caminhos do amor, ternos, doces, relaxantes, brutos e loucos.
Foram brisas e tempestades, doidos, irracionais e meigos, tão meigos como as sedas deslizantes dos lençóis.

***
Um dia, desgraçadamente, há sempre um dia, ele não apareceu.

­-É a minha ânsia, dizia Maria do Rosário, afinal ainda é cedo!
Já passou uma hora, nunca se atrasou cinco minutos.

-Estará farto de mim! Imaginou com pavor.
 Não pode ser, ainda ontem fizemos o amor mais doce e intenso, mais firme e mais selvagem, tal como ele, como nós, gostamos.

-Foi o trânsito, deve estar numa zona sem rede, o telemóvel não dá sinal.

-Será que me usou e agora desaparece, assim, subtil como apareceu!
-Não lhe perdoaria nunca, era capaz de o matar, não seria de mais ninguém!

Telefonou para todo o seu mundo, e para o mundo comum.

Ninguém sabia dele.

-Alguma das suas parvoíces! Disse a tia Aninhas. Tal como o ano passado, quando se meteu no avião e foi para umas maluquices em África!

-Não, não pode ser, gritou Maria do Rosário, ele não me fazia isso!

********

Nem sempre as más notícias são as primeiras a chegar, foi no dia seguinte, às 11 horas, que o telemóvel tocou, Era a Emília:

-Rosário, vem já a minha casa! E desligou.

Sentiu uma agonia que lhe deixou um zoar na cabeça, queria pensar e nada, as ideias troavam num desalinho total. Que terá acontecido?

Não gostou do que encontrou, caras pesadas, olhos vermelhos de choro, um cheio acre a desgraça.

-Mas o que se passa?  Perguntou Maria do Rosário. Que foi? Contem-me por favor?

-Tem calma, pediu Emília, vamos ter fé, vamos rezar. O Mário teve um acidente, com a mota, está no hospital e muito mal mas ele é forte. Vamos pedir a Deus!

-Se ele morrer eu morro com ele, juro, chorou Rosário.

Deus não os ouviu, ou não quis ouvir, ou então, fingiu que não estava atento e o pobre Mário não resistiu.
Morreu nesse dia as 21 horas e sete minutos.

******

Maria do Rosário carregou um luto de três dias, pensou com tristeza nos bons momentos, nos passeios românticos à beira rio, recordou com saudades as serenatas que ele improvisava, não cantava bem mas a voz rouca tinha uma certa magia, reviveu  aqueles momentos, de pura loucura, nos imagináveis lugares onde aconteciam , sem tabus, sem medos, quase irracionais.

Viu, como num filme, o cadáver sereno naquela urna cheia de dourados, o mesmo sorriso que a morte não soube apagar, depois aquela mole imensa a caminho dum cemitério onde, o forno grande, transformou em cinzas o que restou de uma vida.

Foi o regresso a casa, agora mais vazia, diferente, sem as gargalhadas roucas. Silencio, apenas silencio que dói, de forma estranha, dentro de nós.

******

Encontraram o corpo passados dois dias, vestida de noiva, com um esgar de sofrimento no rosto.
As pessoas dizem que foi do desgosto, os médicos sabem que foi do veneno.




Esta bela música foi oferta de uma grande amiga , no sexto aniversário do meu Blogue.


20 comentários:

Unknown disse...

Certamente que ele não queria que também ela tivesse esse fim, mas enquanto não se é capaz de pensar de forma firme e coerente fazem-se as maiores loucuras, algumas, tal como esta, não dão para voltar atrás.

chica disse...

Uma triste história de amor.Forte e profunda. Linda, porém! Bem escrita! abração,ótima semana,chica

rosa-branca disse...

Olá amigo Manuel, em primeiro lugar quero agradecer o estar sempre presente, para regar o meu jardim que ás vezes teima em secar...agora digo-lhe...deixou-me com nó na garganta. O amigo tem o condão de prender o leitor e eu não li...devorei o texto e fiquei triste pelo triste fim destes dois enamorados. Gosto de finais felizes, mas a vida por vezes prega as suas partidas. Adorei meu amigo e...para quando um livro? Eu quero um. Não se esqueça de me avisar para eu o adquirir. Boa semana e beijos com carinho

Anónimo disse...

Olá, Manuel!

São contas do nosso rosário.

Trágico fim, para um amor, sem fim.

Beijo da Luz, com estima.



http://odeclinardosonhos.blogspot.com disse...

Olá meu amigo!
Linda triste e maravilhosa história de um amor...
Parabéns amigo gostei muito!!
abraço
anacosta

Dina Vieira disse...

olá, antes demais muitos parabéns pelos 6 anos do blogue :)
Gostei muito desta história de amor,é triste mas linda!
Beijinhos

Evanir disse...

O Amor é complexo, mas é lindo,
muito lindo! Quando ele .
Acredite no Tempo, na Amizade,
na Sabedoria, e principalmente no Amor.
A verdadeira amizade supõe um pacto de fidelidade,
uma capacidade de dar sem esperar resposta.
Em nome desse amor , que estou aqui hoje.
Um dia especial..especial de verdade.
O aniversário da minha princesa(Lara)
por isso venho convidar para uma visita no meu blog.
Uma semana abençoada e na paz.
Beijos no coração ,Evanir

Laços e Rendas de Nós disse...


Há amores assim, daqueles que se desviam do comum e continuam eternos.

Beijo

Laura

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Um grande caso de amor muito bem narrado, como sempre. Pena, que terminou tão tragicamente. A vida é assim, "prega" grandes surpresas.
Um abraço, Coelho,
da Lúcia

Smareis disse...

Olá Manuel,

Uma história de amor bem escrita, mas com um final tão triste... Essa história tem um dedo de realidade, conheci um caso bem parecido com esse. É muito complicado entender o que se passa dentro de cada um...
Parabéns pela postagem meu amigo!
...você tem uma forma de compor história que sempre me deixa a pensar por um momento...

Beijos no coração!
Ótima quinta-feira!

SOL da Esteva disse...

Manuel

O Amor trás incoerências que não se explicam. É assim, sem mais, e num momento não se discerne entre o bem e o mal.
Sempre o estado de Alma de cada um e a cada momento.
Este, Amigo, é um daqueles Contos que ficam bem próximos de realidades...

Abraços


SOL

Magia da Inês disse...

Só tu para escrever uma tragédia com tanta intensidade dramática.
Se ela tivesse um pouco de paciência superaria a morte do galã... quem sabe o que o futuro lhe traria?!... mas!...


°º✿✿ Bom fim de semana, amigo.
°º✿ Beijinhos bem brasileiros!
º° ✿♥ ♫° ·.

Vivian disse...

Olá, Manuel!

Um conto impactante!!
Fiquei aqui com um aperto no peito...triste... mas contada com maestria! Sempre gosto muito de te ler!
Espero que tudo esteja bem por aí.
*Também sinto falta do meu outro blog, mas a inspiração não tem me visitado...
Agradeço sempre a gentileza e o carinho!
Beijos!

Janita disse...

Manuel, vai desculpar-me mas hoje não me sinto com capacidade emotiva para comentar este seu conto.

Adoro esta canção "Um Dia de Domingo", posso dizer que é uma das minhas favoritas. A letra, a música, tudo me envolve e me diz muito!
" Eu preciso lhe falar, lhe encontrar de qualquer jeito..."

Um abraço, Manuel!

Maria Lucia (Centelha) disse...

OLá meu querido Manuel, saudades de vir aqui!

Creio que é o conto mais triste que escreveste, meu amigo!
Sei que fazes suspense até o último instante, e sempre me surpreendo. Dessa vez, senti-me triste com essa estória de amor que não deu certo, ainda mais com tragédia no meio. Entretanto, és um gênio, na minha opinião, porque além de escrever muito bem, prende a atenção da gente do começo ao fim. Bom demais isso.,

Meu amigo...minha ausência daqui se deve ao meu envolvimento com dois grupos de teatros,desde há muito tempo, aqui minha cidade. E felizmente estamos nos apresentando muito em eventos, feiras, e até em recintos abertos. Com isso, desliguei-me um pouco do meu blog...e consequentemente, das visitas aos amigos e amigas. Ah, e tenho também, participado de algumas manifestações de protestos contra a politicagem do meu País glorioso...Creio que tem tido notícias desses fatos, não?

Até meados de agosto, temos apresentações das nossas duas peças teatrais, e portanto ainda hei de demorar um pouco mais. Por certo, me compreenderás.

Deixo-te um grande beijo, e digo-te: tenho saudade!

Lu...

Unknown disse...

Manelamigo

Deste-me mais uma facadela no pêto, marmanjão!... Atão isso são cousas que se façarão aos cidadões? Julgas kistaki é o do Portas? Irreversivelmente?

Bom, depois deste prolegómenos, deixa-me dizer-te que esta crónica é um monumento com pedestal e tudo. Desenlace dezinfeliz? Quiçá... mas o Mundo não é cor-de-rosa, quando muito é cor-de-burro-quando-foge.

Dum texto destes, corrijo, dum textículo menor do que este estou eu à espera e pelos vistos até às calendas gregas. Vá, cronista, apressa-te!!!!

Abç

Henrique

JP disse...

Olá Manuel...
Li por aí que ficou com pena de eu restringir o blog. Não restringi, amigo, fechei-o, por motivos pessoais que não cabem aqui. Não está aberto a ninguém. Acredite.

Pode ser que um dia tenha saudades, mas de vez em quando passarei por aqui ou por outros lados que me dão prazer, como este.

Abraço grande ao meu amigo

Smareis disse...

Olá Manuel,

Passei pra deixar um abraço e desejar uma excelente semana.
Aguardo a nova postagem!
Beijos!

Ja tem atualização quando puder passa lá.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Mais uma história que infelizmente teve um fim trágico.
Como sempre fico presa a cada palavra.


Um beijinho com carinho
Sonhadora

Vivian disse...

Escrita visceral, meu amigo!!
Que forte e triste. Mas infelizmente mais comum do que finais felizes...
Beijos!