domingo, 17 de novembro de 2013

Além







Sabia que era hoje, há muito tempo que tinha essa certeza, mas  tinha uma vontade enorme de adiar. Não era propriamente medo, há muito que o bani da minha mente, mas a incerteza do que está para além daquilo que eu entendo.

Compreendo a vida, faço parte dela, sei da morte, faz parte da própria vida, ou será, como já ouvi, que a vida é uma pequena pausa da morte!

São conjecturas, divagações pela incerteza, receios pelo desconhecimento ou, talvez, uma vontade enorme por estar deste lado, não sendo tão bom, mas já o conhecemos.

***

Foi numa tarde, de Setembro, que o doutor Osório, olhando-me por cima dos óculos, me foi preparando:

-Caro Aniceto, as noticias não são as que gostaria de lhe dar, pelos sintomas eu já suspeitava, mas queria estar enganado, por isso estes exames todos!

Não me contive com aquela ladainha e, sou perito nisso, interrompi:

-Passe à frente doutor e vá ao que interessa.

O médico pareceu compreender os meus modos bruscos, tirou os óculos, ridículos, e foi duro e seco:

-Vamos ao que interessa, tem um tumor maligno.

Afinal, pensava, mas não estava preparado, senti como um enorme soco no estômago, até pareceu que o cérebro chocalhou. Recobrei, uma calma aparente, e apenas me saiu:

-E agora doutor?

O médico, conhecido de há muito tempo, parecia ter a resposta já preparada:

-É assim! Se não fizer nada, dou-lhe seis meses de vida, se formos para a operação tem 60% de hipóteses, se Deus o ajudar, pode ficar com alguns problemas, mas com sorte fica bom.

Levei algum tempo a remoer, passei algumas ideias em branco e  pensamentos negros.
Escondi de todos, até da família.

Ontem sonhei que tinha sido operado, foi estranho!
 Eu ajudei a mexer naquela confusão de órgãos, de sangue muito vermelho, de ganchos a segurar a abertura, de homens e mulheres de mascaras numa azáfama de bisturis, tesouras curvas e uns alicates que seguravam, enquanto iam cortando pedaços.
Acordei esbaforido, aos gritos. Foi a Mila que me sossegou.

Foi nessa manhã que ganhei coragem e contei tudo. Primeiro choramos, os dois, num abraço deixando que as nossas lágrimas se encontrassem num mesmo lamento.

Mila foi a primeira a enxugar os olhos, a recuperar das emoções.
Segurou-me as mãos e, com a maior ternura, foi dizendo:

-Sabes amor, tu és um homem bom, forte e a razão da minha felicidade. Deus não pode ficar indiferente, vai ouvir as nossas preces, vai ser justo. Não tenhas medo, vai correr bem e, eu, estarei sempre a teu lado.


******


Vim ontem para o hospital, disseram que me iam preparar para, amanhã à tarde, ser operado.

Tiraram sangue para análises, espetaram-me uma agulha na veia, com um tubinho ligado a um saco de soro, que ia pingando numa cadência programada.
A enfermeira tinha um sorriso lindo, ajeitou-me a roupa, enquanto ia dizendo:

-Agora durma, descanse!

Vieram, com uma espécie de cama com rodas, e meteram-me num elevador, maior que a minha cozinha, e levaram-me para uma sala enorme, com uma imensa luz, transbordaram-me para uma mesa.

O cirurgião, julgo que Dr. Norton, sossegou-me com palavras positivas.

-A Dra. Cidália vai dar-lhe a anestesia, quando acordar é um homem novo!

*****

Acho que já acordei mas não sei quem sou nem onde estou.

O sítio é lindo, a luz brilha, a música é suave.

Devo estar, ainda, no efeito da anestesia.

Bom! Já devo estar acordado, tenho aqui todos os meus amigos, meus pais e até os meus avós, afinal estavam vivos, confusão a minha.

Só falta a Mila o que é estranho!

Porque será que a minha mulher não está?




17 comentários:

JP disse...

Magnífico Manuel. Magnífica abordagem de um tema que, sinceramente, fujo dele. A morte. Seja como morte, ou sendo a vida uma pausa da morte. Ou sendo o que for.


Abraço

chica disse...

Lindo te ler, sempre assim aqui. Essas experiências chegam a arrepiar.Ganhar diagnósticos, cirurguias propostas... Adorei !Escreves e nos prendes! abração,chica

http://odeclinardosonhos.blogspot.com disse...

Como muito bem disse o amigo JP essa foi uma abordagem perfeita a um tema tão sério mas infelizmente tão certo e presente...
beijo amigo
anacosta

dilita disse...

Visito com assiduidade, mas nunca comentei.
Lindo este texto, como todos os anteriores.
Só se morre uma vez, mas ninguém se habitua a tal certeza. É demasiado transcendente,para se encarar de ânimo leve.

Gostei muito deste texto!E da forma bonita como escreve. Obrigada.
Dilita.

Sónia da Veiga disse...

Há quem diga que, por causa desta confusão de quem morre não saber bem on de está, é que se faz o velório - a ver se a alminha percebe...
Ora esta tua história mostra que isso não é válido! ;-P

Uma amiga disse que "há vida para lá da vida" e acabaste de o provar! ;-)

Beijinhos e boa semana,
Sónia

P.S.: É tão bom voltar a ler-te e a comentar! :-)

Anónimo disse...

Que bom seria se nos reencontrássemos todos do outro lado... Como sempre uma história surpreendente e bem contada, Manuel.Adoro te ler.

Beijinhos.

Nouredini.'. Heide Oliveira disse...

Caro Manuel,
cheguei a voc~e através do Rendade birras da amiga Dilita.
Obrigada por nos lembrar de forma firme e sem lamurias desta nobre verdade da qual não escapamos.
Se imperiosa é a morte, tratemos pois de construir em traços diários a vida, pois esta sim é surpresa diária.
Quando quiser passe no cafeebolinho.blogspot.com e será um prazer recebe-lo para um dedinho de prosa e um cafezinho.
abraços fraternos
Nouredini

Laços e Rendas de Nós disse...


Gostei, Manuel deste 'post mortem'. É bom acordar rodeado de amigos!

Beijinho

Laura

Anónimo disse...

Olá, Manuel!

É o tema do dia, infelizmente.

Mas, onde estará a "sua" mulher? Vida e morte aqui, se misturam. Efeitos da anestesia, julgo eu.

Beijo da Luz.

Projeto de Deus 👏 disse...

Surpreendente historia como todas as outras que escreve.

Uma viagem que todos temos por certo,
Difícil é aceitar-mos.

Obrigada meu querido!

Boa noite tá?

Manuel disse...

© Piedade Araújo Sol deixou um novo comentário na sua mensagem "Além":

a morte é irreversível todos sabemos, mas, acho que ninguém está preparado para ela.
eu pessoalmente não lido muito bem com a morte.
achei o texto muito bem elaborado que prende o leitor do principio até o fim.
mas, aqui está o busílis da questão, o fim foi o mais correto, embora não estivesse à espera e para mim foi surpreendente.
um bom texto.
parabéns !
beijo

:)

Maria Luisa Adães disse...

Manuel

Da análise deste belo texto eu não tirei a realidade da metáfora, não entrei com os personagens à sua volta e tão juntos que me perguntei se alguém morreu...Ninguém respondeu...

Só sei que todos se reuniram na ajuda e no amor que sempre os protegeu e que talvez nunca tenha sido tão evidente como foi nesse momento.

Não estou preparada para morrer, mas sei que morro!

E mais, acredito numa vida espiritual para além da morte!

Belo seu texto, repito e não posso deixar de o repetir,
mas não entrei nele completamente
de forma a entender e analisar o seu conteúdo onde predomina
A Vida e a Morte!

Graças por o ter escrito
e me deixar confusa
sem saber...sem saber...porquê?

Maria luísa

Magia da Inês disse...

¸.•°♡♡º°

Tu és um mestre em escrever e demonstrar sentimentos.

Eu queria que fosse assim... dormir nesse mundo e acordar rodeada das pessoas que eu amo... mas, tudo são incertezas, como saber se sou merecedora desse prêmio?!

Bom fim de semana!
Beijinhos.
Brasil.¸.•°♪

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Gosto, dessa "intimidade saudável" com a temida Morte (para a maioria). Sabe o que me veio à mente?: "Assim é...(se lhe parece)" de Pirandelo. Seu texto, Manuel, daria uma extraordinária peça teatral: tragi-cômico...adorei!
Beijos,
da Lúcia

Eduardina disse...

A morte é a outra face da medalha, e faz parte da vida. Como o dia e a noite, o sol e a sombra...A morte acontece quando o invólucro já está demasiado cansado e gasto para nos conter o espírito, e se torna num fardo.Mas continuamos a existir.
Quero acreditar que assim é. Por isso gostei tanto da forma delicada e bela como terminou o seu texto.

Eduardina disse...

A morte é a outra face da medalha, e faz parte da vida. Como o dia e a noite, o sol e a sombra...A morte acontece quando o invólucro já está demasiado cansado e gasto para nos conter o espírito, e se torna num fardo.Mas continuamos a existir.
Quero acreditar que assim é. Por isso gostei tanto da forma delicada e bela como terminou o seu texto.

Bloguinho da Zizi disse...

Ai que isso tudo é difícil.
Acabo de passar por uma cirurgia onde fiquei alguns dias hospitalizada. Tua história me remeteu a cada passo que dei dentro do hospital.
Não fosse a complicação que tive tudo seria mais fácil. Mas houve momentos em que não sabia que estava aqui ou lá.
Hoje sei que ainda não foi desta vez, mas a fragilidade ficou e por vezes o medo do desconhecido se instala.

Coisas da vida!
Tudo passa!

Beijinhos