domingo, 22 de junho de 2014

Destino


 

(Este Blogue nasceu no dia 24 de Junho de 2007, faz 7 anos. Agradeço, a todos, os que me têm acompanhado)



Quando saiu do carro ficou estático, como se o tempo tivesse parado. A casa era uma imagem pálida da que mantinha no pensamento. As paredes tinham perdido a cor e, enormes feridas, deixavam à vista as marcas dos tempos. As janelas, onde os vidros partidos mostravam as madeiras carcomidas, mais pareciam assombrações.
Na cobertura as telhas arrancadas davam um ar de abandono.


Absorveu cada recanto, reteve dentro de si cada momento como se fosse possível voltar, no tempo, ao momento em que naquela casa viu a luz o dia.

Hoje, passados tantos anos, quis regressar às recordações, aos tempos em que as ilusões ainda faziam parte do dia-a-dia.

***

Foi numa tarde de um inverno, frio e chuvoso, que abriu os olhos para a vida, não nasceu em berço dourado, foi difícil a infância, luta constante para passar despercebido para a trovoada não lhe cair em cima. Brincava, com brinquedos imaginados, no silêncio, quase invisível.


Aos seis anos foi para a escola, tantos meninos alegres e bem-dispostos que os pais deixavam à porta com um beijinho, ele foi sempre só, sem beijinho, escondido na timidez do medo que sempre o acompanhava.

Mas, de repente, começou a ser importante, era mais brilhante que todos os outros. As letras, e os números, passaram a ser os seus melhores amigos. A professora, Dona Natália, com um afago na cabeça, dizia-lhe:


-José assim vais longe, não te percas filho!

Foram dois anos de emoções, pela primeira vez notavam a sua existência e uns laivos de alegria alimentaram-lhe a alma.

Mas era demasiada felicidade e ele não nasceu predestinado para ser feliz, não sabia mas estava escrito no livro do destino, talvez no Armagedão.


******

Foi numa tarde, de Setembro, que os pais o mandaram arranjar a tralha, amanhã, bem cedo, uma camioneta ia fazer a mudança, iam morar para a capital.

Ainda olhou, para trás, e viu a casa onde nasceu perder-se à distancia e, jurou, nesse momento, que ia crescer e voltar para o lugar onde não foi, totalmente feliz, mas onde alguém lhe deu atenção. 

-Obrigado professora Natália!



Foi difícil, a escola não era a mesma, os rapazes não aceitaram bem, um pobre, provinciano e o professor não sabia sorrir. O aluno perdeu o brilho, os castigos substituíram a falta dos carinhos, a revolta surda, e silenciosa, instalou-se e a escola passou a ser a rua onde se deixava perder, na imensidão dos sonhos que morreram à nascença.

Aos quinze anos fugiu de casa e, tem a certeza, que ninguém deu pela falta, foi uma espécie de alívio.


Correu a vida pelos piores caminhos, conheceu a fome e a solidão, experimentou os vícios que o levaram a mundos irreais, às ressacas dolorosas, aos amores irreais feitos apenas do gosto da partilha, da necessidade da procura, do medo de estar só.

Um dia conheceu alguém que o fez renascer, não lhe perguntou quem era, donde vinha, nem o que queria, Apenas lhe deu o que ele, há tanto tempo, procurava, Atenção!

Foram dois anos mágicos, intensos de afectos, um andar de mãos dadas, olhos nos olhos, corações em uníssono, como se fosse apenas um a bater em dois peitos. Era um adivinhar de pensamentos, um querer que alimentava, quase mágico. 

Esqueceu todas as agruras. Os vícios, eram apenas um ponto negro que o tempo ia apagando, como se nunca tivesse sido existido.


Os dias deixaram de ser rotineiros, eram intensos e preenchidos, as horas eram demasiado rápidas, o tempo escoava-se, como se não existisse.

****


Foi num dia de Maio, o sol entrava pela janela e punha mais brilho no rosto magro de Ofélia, só agora notava como tinha emagrecido nestes últimos tempos, os olhos brilhavam, febris, no reflexo, azul, de felicidade que lhe iluminava a alma, uma certa angústia parecia toldar todo o encanto. 


A tristeza passou a fazer parte do dia-a-dia, de Ofélia, dizia que não era nada, mas uma sombra enorme passou a habitar aquele corpo frágil.


Repetia que estava tudo bem mas, era notório, que estava tudo mal. Os olhos perderam o brilho, o sorriso murchou, a tristeza era tão profunda que parecia doer.


Um dia recusou levantar-se, a força, já não aguentavam o frágil corpo, as pernas não sabiam obedecer à vontade.


Quando a levaram para o hospital já era tarde, o tumor já se tinha apoderado do cérebro, já tinha tomado conta do pensamento e da vontade.


José sentou-se ao lado da cama e durante três dias esperou um milagre que nunca chegou.

A vida tirou-lhe o pouco do que, algum dia, lhe deu.

 

****


Hoje estava ali, olhando o que resta de uma casa onde, as feridas, deixavam bem visíveis o abandono de muitos anos.


Não sabia bem ao que vinha, talvez estivesse a fugir de uma vida que o pouco que lhe dava e, não tardava, lho retirava da maneira mais cruel.

Pensou voltar a estas origens e por termo a uma existência mas, se lhe deram vida devia vive-la e lutar contra a adversidade, tinha que honrar todos os dias um anjo, Ofélia, que um dia encontrou no caminho, para lhe atenuar o vazio que conservava da existência.


Recordava aquela mulher, sentia a sua presença a cada momento, as últimas palavras soavam, como uma oração, no seu pensamento:

-José! A melhor maneira de me manteres, na tua memória, é vivendo a vida com a mesma intensidade, destes últimos dois anos, eu vou estar sempre contigo.


Queria, e ia, respeitar a sua memória.

Restaurou a casa, pintou as paredes de um verde muito claro, era a cor de que ela gostava, nos canteiros semeou amores-perfeitos, as flores que ela mais amava.

Mudou a vida, ia escrever um livro, ainda não sabia o título, não tinha escolhido nenhum enredo, não tinha ideia como começar, apenas sabia que um dia o iria escrever.

Durou dois anos, as saudades corroeram-lhe o corpo, o desgosto matou-lhe a alma.

O livro começou-o, apenas uma linha numa página manchada de lágrimas:


"Foi num dia de muito sol que conheci quem iria iluminar a minha 

vida"

Nunca o conseguiu acabar.




15 comentários:

Manuel disse...

Gina Gg deixou um novo comentário na sua mensagem "Destino":

Primeiro: parabéns pelos 7 anos de blogue.

Segundo: gostei do conto, em certa altura retrata um renascimento, é sempre bom.

Beijinhos

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Publicada por Gina Gg em navoltadotempo a 22 de Junho de 2014 às 20:30

Manuel disse...

Por lapso apaguei o comentário, recuperei e colei.
Peço desculpa à Gina.

chica disse...

Sensacional! Adorei te ler e não sei há quantos anos te acompanho. Mas são bastante desses 7 que completas! Parabéns e que juntos possamos festejar e comemorar muitos mais! abração,chica

Bloguinho da Zizi disse...

7 anos! Isso é pros fortes! Parabéns pra ti e para nós que somos presenteados com tuas histórias. Beijinhos

Unknown disse...

A vida dá e a vida tira.No fim resta uma sombra de esperança que nunca sabemos o tempo que dura.
Uma história pesada,triste e talvez com alguma verdade.
Quantos passos perdidos, vazios de um sorriso, de um mimo de um olhar...

Evanir disse...

As coisas que passamos, são, por si mesmas, passado.
Acreditar no amanhã é construir a Fé que nos catapulta para olhar o futuro.
O optimismo é metade do caminho que não damos conta.
Saber e conhecer o silêncio da Alma é fundamento adequado.
Os lamentos e gemidos apenas alegram os que não nos querem bem.
Ter Fé é... Acreditar.
Eu creio!
(Sol)
A vida é o bem maior que Deus
nos presenteou.
Cabe a nós cuidar zelar
do corpo ,alma e espirito.
E nessa caminhada também
cabe a mim: zelar das amizades
linda que Deus me deu ,
que estraram na minha vida
para auxiliar na minha jornada.
Para que meu fardo se torne mais leve
vocês meus tesouros caminha ao meu lado sempre.
Beijos de carinho e gratidão.
Evanir.
Amigo vi que a 7 anos esta com seu blog uma longa jornada.
Li hoje uma história quem sabe verdadeira .. A sempre uma esperança mesmo que muitos dizem que não.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

o conto é triste e pesado.

a vida devia ser mais alegre, mas há quem esteja predestinado a sofrer.

parabéns pelos 7 anos de blogue.

um beijo

:)

São disse...

Primeiro que tudo : parabéns e que venham setenta vezes sete anos , para continuarmos a ler contos assim interessantes!

Abraço amigo

Mirtes Stolze. disse...

Boa tarde Manuel.
Fui do blog da Rosa solidão e vir um sábio comentario seu por la, sobre plagio, não que eu concorde rsrs,mas mostraste maturidade e sabedoria, fiquei curiosa e vim lhe conhecer.
Meus parabéns pelo seus 7 anos de blog, gostei e vou segui-lo.
Na vida há obstáculos,mas passar por eles é uma vitoria.
Um abençoado dia.
Abraços.

rosa-branca disse...

Amigo Manuel, em primeiro lugar muitos parabéns pelo aniversário deste seu cantinho, que eu adoro e depois a sua história, que como sempre nos deixa se fôlego. A vida nos dá e nos tira, embora por vezes não nos chega a dar, mas tirar, tira sempre. Obrigado pelas gotas de ternura no meu canto, que por vezes eu quase o deixo secar. Beijos com carinho

SOL da Esteva disse...

Parbéns pelo Aniversário

Sete anos, são uns momentos
Da Obra já construída.
Mesmo "Na volta do Tempo",
Há tempos que os tormentos
Até alegram a Vida.

Deixa sem nó, o teu ponto,
Que resultará num bom Conto.


No teu Conto de Hoje, sempre há um José injustiçado da Vida e poucas professoras Natália(s).
O reconhecimento das pessoas faz-se (infelizmente) pelo que trazem vestido ou pelo que demonstram possuir.
Um "prémio" de dois anos é (foi) pouco. O renascer das raízes também não foram o que os sonhos sempre nos sugerem.
Como sempre um belíssimo fundo moral dentro duma História que é demasiado comum entre as gentes.

Renovo os meus Parabéns pelo teu grande Blogue.


Abraços


SOL







Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Antes de mais muitos parabéns pelo aniversário do teu blogue, esperando que estejas cá por muitos anos brindando-nos com as tuas estórias que adoro ler sempre.
Deixo um beijinho e agradeço as palavras de apoio e carinho que me adoçaram o coração e me ajudaram a voltar.
Sonhadora

Magia da Inês disse...

•°♡♡彡º°。
Amigo, você sempre me surpreende com suas histórias!!!
Você, simplesmente, nasceu para escrever.

Bom domingo e boa semana!
Beijinhos.
¸.•°♪♬♫º°

Unknown disse...

Passo para te desejar um óptimo mês de Julho - boas férias.

Magia da Inês disse...

♡♡彡
Passei para desejar:
Boa quinta-feira!
Beijinhos.¸.•°♪
♬♫