quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um gelado de duas bolas









-Mãe, há muitos pais Natal? Perguntou Clarinha.

A mãe ficou um pouco preocupada, não sabia bem como responder. A menina tinha apenas seis anos e ainda vivia o sonho, lindo, de acreditar no Pai Natal, no trenó e nas renas. Não queria que a filha perdesse, tão nova, toda essa magia.

-Que pergunta, Clarinha, então não sabes que Pai Natal só há um!

-Mas insistiu, a criança, eu já vi tantos e eram, todos, diferentes. Vi um gordo à porta da loja dos brinquedos, depois vi um magrinho na esquina da rua, das casas bonitas, estava a fumar e o Pai Natal não devia fumar. Pois não, mãe?

Maria do Carmo pensou quanta falta lhe fazia o marido, ele saberia explicar bem todos estes porquês, mas algo o chamou e ficou ela e a filha.

Foi difícil, não estava preparada para ser pai e mãe ao mesmo tempo e muito menos para  ter tantas carências que a estavam a atirar para situações que, na verdade, não queria, mas tinha que alimentar a magia do Natal no sonho da filha:

-Sabes, Clarinha, que só há um Pai Natal, é o que vem deixar as prendas ao meninos e meninas que se portam bem, os outros que estão por aí, são a fingir para enfeitar as lojas.

-Mãe, voltou a criança, e eu portei-me bem, não portei?

-Muito bem meu amor, és uma menina muito especial. Respondeu a mãe.


*****


Foi num domingo, de Maio, estava um Sol que convidava a um momento de laser no bar à beira mar.

Maria do Carmo pediu um gelado, não conseguia resistir a duas bolas, regadas com um licor de chocolate, e foi sentar-se numa mesa ao fundo da esplanada.
Com muito cuidado, parecia uma criança, ia tirando porções muito pequenas, para o fazer durar mais. Era um quadro lindo, a colher deslizava suavemente, tentando segurar uma fina tira de sorvete, com algum licor, que depois com os olhos semicerrados, deixava derreter de forma, quase sensual, na língua.


Na sua frente, Albano, estava fascinado com o gesto, com o encanto sedutor da imagem. Era digno de ser visto, uma mulher linda num êxtase total, absorvida no delicioso sabor de um sorvete que ia deixando, muito lentamente, derreter na boca, de forma, quase, sensual.

Não resistiu, era demasiado, Foi comprar um gelado, aproximou-se e delicadamente sussurrou:

-Há imagens que ficam comigo para sempre, tem magia.
É difícil descrever este momento, queria ficar com ele eternamente!
Posso sentar-me e fazer-lhe companhia neste momento tão especial?

Maria do Carmo corou, não pensava estar a ser alvo de atenção. O moço era giro e parecia simpático. Porque não?

-Esteja à sua vontade, respondeu, a mesa não é minha e esqueci que não estava só, deixei-me levar pelo prazer que um bom gelado, sempre, me provoca.

Albano sorriu, tinha um sorriso saudável, dentes perfeitos nuns lábios desenhados por um artista, os olhos de uma cor indefinida, pareciam cinzentos, e altamente sedutores.

Tentou continuar o diálogo:

-Sabe menina, desculpe, não sei o seu nome!

Ela quis hesitar mas respondeu:

-Maria do Carmo, mas não importa o meu nome, tenho que ir embora!

-Lindo nome! Elogiou Albano. Mas só podia ser assim, para condizer com a dona! Não vá já embora, vamos prolongar este momento, de prazer, até acabarmos os nossos gelados!

Não pode evitar um sorriso antes de responder:

-Também não sei o seu nome e não me importa! Mas não se arme em sedutor barato!

Ele corou e quase gaguejou ao responder:

-Desculpe, tem toda a razão, fui importuno e sem princípios! Sou o Albano e juro que não sou nada do que diz, foi uma atracção natural e sinto que também não lhe fui indiferente.

-Oh! Exclamou ela, também é convencido e pretensioso!

-Não diga isso! Suplicou Albano.

Depois foi um amenizar da conversa, os sorrisos que dizem mais que mil palavras, os gestos simples e a cumplicidade que alicerça os sentimentos.


******


E foi assim, desta forma simples, que começou uma história de amor.
Momentos de ternura, caminhar de mãos dadas, promessas feitas no calor da paixão, juras eternas e compromisso de um seguir juntos, até que Deus os separe.


Foi um namoro de seis meses, casaram em Dezembro, não estava previsto, mas naquela manhã, Maria do Carmo deu a novidade:

-Amor estou grávida!

Albano ficou tão feliz que apenas lhe saiu:

-Vamos tratar já do nosso casamento! Vamos construir o nosso lar, para receber o nosso filho quando nascer.


******


Foi em Julho que Clarinha abriu os olhos ao mundo.
Disseram, logo, que tinha os olhos do pai e a boca da mãe.

O casal continuou, no mesmo encanto, o amor foi dividido por três, ninguém notou a diferença, eram felizes.

Estavam, novamente, em Maio. Iam fazer seis anos que se conheceram naquela esplanada à beira mar.
A Primavera,  prometia as tardes quentes, havia no ar um certo lirismo. É natural na estação das flores, o romantismo, convida ao amor.

****

Albano estava com um ar nostálgico, Maria do Carmo, apercebeu-se. Não era normal, estava sempre tão alegre.
Tentou, com carinho:

-Que se passa amor? Compartilha, comigo, os teus pensamentos!

Albano pareceu acordar, daquela espécie de letargia, e lembrou à sua amada:

-Sabes que faz amanhã seis anos que nos conhecemos? Recordo com muita saudade aquele momento mágico.

-Não esqueci! Confessou Maria do Carmo.

-Sabes o que vou fazer, disse Albano, vou à gelataria, comprar dois gelados, de duas bolas regadas com chocolate. Temos que comemorar aquele encanto.

*****

Saiu porta fora, vai fazer amanhã seis meses.
Não mais apareceu, nem em casa, nem no emprego.
A polícia já tentou tudo. Mas mesmo tudo.

E nada!

Nunca mais voltou, não mais deu sinal.

Desapareceu como se tivesse evaporado no espaço.

Mas, Maria do Carmo, continua à espera, o coração diz-lhe que ele, um dia, de repente, vai aparecer com dois gelados, de duas bolas, com creme de chocolate.





15 comentários:

chica disse...

Puxa, tu e tuas histórias com finais surpreendentes! Adorei mais essa! Valeu! abração,chica

Mirtes Stolze. disse...

Boa noite Manuel.
Que lindo e tão triste,sempre me surpreende no final dos seus escritos, mas dessa fez me levou a lagrima, que triste meu amigo, fiquei a imaginar como seria doloroso essa situação na vida real.Um lindo restinho de semana, com muitas alegrias. Obrigada pelo carinho, você é uma pessoa que gosto muito. Um forte abraço.

Gracita disse...

Boa noite Manuel
Você com seus finais irreverentes.
Eu aqui achando que seria um final romântico caí com tudo na realidade.
O abandono sem uma palavra.
E olhe que este final é bem real. Quantas pessoas não passaram por essa situação. Fiquei um tantinho decepcionada... É o meu romantismo rsrs
Um abraço

CÉU disse...

E tudo começou com um gelado, um olhar, não gelado, mas esperemos que termine com o aparecimento do amado, com um gelado, o mesmo de há seis anos.

Bom fim de semana, k já se avizinha!

São disse...

Conheço quem foi buscar cigarros e não mais regressou...

rosa-branca disse...

Olá amigo Manuel, obrigado pelo seu carinho lá no meu canto. Embora um pouco zangada com a vida voltei, para ver se consigo seguir em frente. Linda e emocionante história de amor. Quem sabe ele um dia volte mesmo com um gelado na mão. Adorei meu amigo. Beijos com carinho

SOL da Esteva disse...

Sério e muito perturbador.
O Amor surgiu , teve o seu encanto, germinou e o mistério fica no lugar do mesmo Amor.
Não esperava tal fim; ou teremos a continuidade?
Privar, a Clarinha, do seu Pai Natal verdadeiro é doloroso.
Mesmo assim, Manuel, um belo Conto.
Afinal, os Contos são assim mesmo.
Gostei.


Abraços



SOL

Janita disse...

O que tem de ser tem muita força e a esperança é sempre a última coisa que deve morrer.
Mesmo não havendo um final, daqueles em que foram felizes para sempre, gostei muito deste breve conto.
Tem sabor a realidade e há tantos casos assim...
Seria bom se o Albano voltasse, mesmo sem as duas bolas de gelado.

Há muitos que vão comprar cigarros, uns voltam passado muito tempo, outros não!

Adorei os ABBA.
Um dia traga ao seu cantinho a "Chiquitita".

Um abraço e obrigada!

Janita

Unknown disse...

Surpresa este final.
A minha imaginação conduziu-me a um reviver de emoções e recordações que naquele espaço de tempo lhes construiu tanta felicidade.
História de vidas diferentes que um dia se cruzaram e receberam o encanto da flor do amor.

Não gosto da desilusão.

Smareis disse...

Oi Manuel!

Uma bela história muito bem tecida... Eu sempre surpreendo com o final de seus relatos.
Coitada da Maria do Carmo ainda tem a esperança que o amado volte, e traga com ele os gelado de duas bolas... Triste fato!
Isso acontece também na vida real. Pessoas que sai com pretexto pra comprar algo, e nunca mais volta para casa.

Um beijo!
Ótima semana!

CÉU disse...

Continuamos com este delicioso gelado, na imagem e no texto, aliando-se, infelizmente ao tempo que continua muito frio, gelado, mesmo.

Boa semana!

CÉU disse...

Já não ouvia os ABBA há imenso tempo. Foi, hoje. Obrigada, por este momento!

Até breve!

Unknown disse...

Ah, meu amigo, que conto mais triste! Gosto de finais felizes, mesmo sabendo que o mundo real nem sempre oferece um happy end. Já ouvi falar de casos assim em que o homem sai "para comprar cigarros" e desaparece no mundo. Para a esposa e filhos, principalmente para ela, fica aquela sensação de culpa, de ter feito alguma coisa errada, de ter sido a culpada pelo sumiço de uma pessoa que até então nunca havia tido/ou dado motivos para desaparecer de forma tão sofrida para os familiares. Mas como a arte imita a vida (ou a vida imita a arte?) o escritor conduz a sua história da maneira que mais lhe aprouver. E mesmo tendo ficado triste com o desfecho que destes para a Maria do Carmo, Adelmo e Clarinha, parabenizo-o pelo conto muito bem escrito e, principalmente, bem desenvolvido nessa forma de narrar intercalando as situações.
Parabéns, amigo, por mais essa demonstração de uma escrita inteligente que prende a atenção e suscita desencontrados comentários. Coisa de gênio!
Sorrisos, estrelas, admiração e carinho na tua semana,
Helena

Mirtes Stolze. disse...

Bom dia Manuel.
Passando para lhe desejar um dia iluminado, com muitas alegrias como bem merece meu estimado amigo.
Um grande abraço.

Unknown disse...

Pobre Clarinha, Manuel...

abç amg