domingo, 10 de maio de 2015

1755











-Isso são fenómenos, gritou Gilberto. Não é normal essas coisas acontecerem, só podem ser mesmo fenómenos. Onde já se viu uma coisa destas! Está um homem descansado a pensar na melhor maneira de não fazer nada e, de  repente, sem mais aquela, esta trampa treme toda como se fosse um castelo de cartas. Não é normal!

Estava Gilberto, moço de estrebaria, neste solilóquio quando o estrondo tomou conta do espaço, a ondulação possuiu a terra, que ia ruindo, à medida que as águas iam sorvendo as ruas que desapareciam como se nunca, ali, tivessem estado. Os sinos das Igrejas repicavam, de uma forma desordenada, e as labaredas das velas que tombavam começavam a consumir o que o tremor tinha poupado.
A cidade naquele dia, de Todos os Santos, parecia ter sido tomada por um demónio, a confusão era tanta que a população fugia da confusão sem se preocupar com, os possíveis, sobreviventes entre os escombros da parte da cidade arrasada.

               *********

Estávamos no ano de 1755, Lisboa ia desaparecendo, era o caos, gritos de desespero, cadáveres adivinhavam-se debaixo dos escombros.

Gilberto despertou daquela apatia onde tinha mergulhado. Os cavalos dispararam de forma desordenada, alguns não foram longe, eram engolidos pelas enormes fendas que se abriam no caminho.

O palafreneiro não pensou duas vezes, saltou para a garupa do Herodes um alazão, cor de canela, e disparou como um louco por entre escombros, fendas no terreno e águas, dum mar, que em ondas tenebrosas pareciam querer engolir tudo.

A sorte, por vezes, protege os audazes e Gilberto, quase milagrosamente, corria à desfilada no sentido de Sintra, pensava ele que, como ficava num alto, podia ter melhor protecção.

O cavalo era ligeiro por entre caminhos difíceis, veredas sinuosas e instáveis. Parecia saber o que era certo, adivinhar o que vinha a seguir, tantas vezes depois de tragar o caminho este desaparecia, como se nunca tivesse existido.

O animal estava exausto, espuma nos cantos da boca, soprar forte pelas narinas e sinais de desidratação, eram evidentes.
O fim era de adivinhar.

Gilberto insistia, apertava com fúria, não era habitual mas o medo, vencia o bom senso. Herodes tentou o salto, foi o seu último intento, caiu arfando, tinha chegado o fim.

Gilberto, ainda insistiu mas era tarde. Lágrimas destilaram-se, pela cara deixando, dois traços no encardido do rosto.

Os cavalos eram a sua família, nasceu e cresceu no estábulo. Quando o pai morreu, com a peste, foi ele, com 12 anos, nomeado pelo Senhor Marquês, para continuar o trabalho que foi do progenitor.

Era bem tratado, tinha um cubículo, na parte superior das cavalariças, dormia numa manta em cima da palha, era fofa mas, por vezes, ficava com o corpo cheio de brotoeja, esfregava com um unguento que o pai tinha num frasco e ia passando a comichão.

O Frei Vaz queria que aprendesse a ler, mas o cabrão, vinha com o latim e ele não se entendia, levava com uma vara nas orelhas e fugia. O Frade bem gritava mas, porrada, já bastou a que o pai lhe dava.

Nunca mais! Quando topava a batina a aproximar-se, escondia-se até que o estupor se fartava e desaparecia.

Agora, com 19 anos, via-se assim no meio deste inferno demoníaco. O palacete e tudo o que o rodeava desapareceu engolido pela terra, as ondas enormes fizeram o resto, se não fosse a rapidez, a força e a inteligência do Herodes, se calhar também ele não tinha salvo o coiro.

Agora tinha que dar rumo à vida, não voltava para aquelas bandas, ainda o Marquês o ia acusar da tragédia e estava farto daquela vida, sempre preso aos animais.
Descanso nunca!
Era limpar cavalariças, dar ração aos bichos, mudar a água, levar os cavalos ao campo, arrear este ou aquele, conforme dava nas ganas dos senhores. Mas dia de descanso, para ele, nunca.
Também precisava de conhecer as cachopas e, havia algumas, bem apetitosas que ele bem as via passar frente ao portão.

Pouco percebia de mulheres, a única que conhecia era a mulher do Marquês, que aparecia como não quer a coisa e o levava a um enrolanço nas palhas. Era bom, mas o raio da mulher era balofa, por todos os lados, e nunca estava satisfeita embora ele, fosse rapaz de muito pedalada.

*****

Meteu-se ao caminho, a terra continuava a tremer.
Já avistava o castelo, mas faltava muito e o caminho era mau e traiçoeiro. De vez em quando lá vinha mais um estremeção, mais pedras a rolar pela encosta, tinha que fugir se não queria ir, de supetão, á frente de alguma.

Parou para tomar fôlego, olhou para trás, ao longe, Lisboa, era uma mancha sulcada de incêndios, no meio do pó, que andava pelos ares.

Apeteceu-lhe chorar, mas macho que é macho não chora e ele era, assim pensava, um puro garanhão.


******

Chegou à vila, deviam ser seis horas da tarde, andou pelo menos oito horas neste frenesim. Estava muito frio, as pessoas pareciam meio desnorteadas, o medo era visível em todos os rostos.
Muitos estragos e alguns mortos, ainda se amontoavam nas ruas, carretas iam transportando, os cadáveres, para o cemitério com receio das epidemias.

Gilberto ofereceu os seus préstimos, foram aceites. Todos eram poucos.

Ao fim do dia, os homens, foram desinfectar a garganta na única taberna da vila.
Entre conversas, lamentos e lamúrias iam descarregando a tensão, de um dia, que já queriam esquecer.

O dono da tasca, um galego, que por aqui tinha assentado olhou Gilberto e perguntou:

-De donde vienes, no se quién eres?

Gilberto rasgou um sorriso, já tinha reparado que o galego tinha uma filha, roliça, fresca e bem nutrida.

-Sou Gilberto, fugi da desgraça, em Lisboa, e quero ficar por aqui se arranjar um patrão.

-E que puedes hacer?

-Tudo e aprendo rápido!

-Entonces necesito a alguien, aqui en la taberna, si quieres!

-Quero pois, respondeu, posso começar já?

-Te doy dormir, comer es un pequeño salario. Qué dices?

-Posso começar, não te vais arrepender!

        ********

Gilberto olhou para a filha do taberneiro, que entre a porta da cozinha, o mirava com um ar apreciador.

Ia começar e, tinha o palpite, que em breve ia fazer parte da família.
O galego já não era novo e, um genro, se calhar, vinha a propósito.




13 comentários:

CÉU disse...

Uma das melhores e mais interessantes histórias k li, aqui, em minha opinião.
O terramoto de 1755, k abalou e destruiu a Baixa Pombalina foi terrível, mas houve quem se soubesse safar, como descreve no seu conto.

Boa semana!

Janita disse...

Talvez a recente desgraça no Nepal o tenha inspirado, Manuel.
Esta história baseada no terramoto de 1755 que abalou Portugal e destruiu a Baixa de Lisboa, é uma forma de nos fazer pensar que em dado momento a Terra pode voltar a tremer e esses 'fenómenos' da Natureza não acontecem só nos outros países!

Brilhante a sua escrita e como o Manuel resolveu acabar com os finais tragicamente irremediáveis.
Felizmente, o pobre Gilberto, farto de ser saco de pancada, ainda encontrou força para procurar um futuro melhor...parece que encontrou!

Abraço e boa semana.

A canção muito apropriada, gostei de a ouvir!

São disse...

Será que o violento abalo de 1968 foi escape para que ainda não tivéssemos a tragédia do Nepal nem a repetição da de 1755?

Boa semana

dilita disse...

Olá Manuel

Fiquei encantada com este conto. Costumo "vir espreitar" e só ler mais tarde. Porém hoje não consegui adiar - adiei sim, as tarefas que ia começarOlá Manuel

Fiquei encantada com este conto. Costumo "vir espreitar" e só ler mais tarde. Porém hoje não consegui adiar - adiei sim, as tarefas que ia começar.
Fiquei presa a esta descrição magnifica, esqueci tudo à minha volta, e deliciei-me. Li e voltei a ler, e senti pena por ter um fim.
Parabéns!
Um abraço.
Dilita.
Fiquei presa a esta descrição magnifica, esqueci tudo à minha volta, e deliciei-me. Li e voltei a ler, e senti pena por ter um fim.
Parabéns!
Um abraço.
Dilita

chica disse...

Já sabes: daqui te aplaudo e agradeço pelos minutos de ótima leitura que proporcionaste!Adorei! abração, linda semana! chica

dilita disse...

Caro Amigo

Aceite as minhas desculpas.O meu comentário apesar de se perceber o que eu quero dizer, está uma lástima...
Dá-me vontade de atirar o computador pela janela. (mas mesmo pela janela...)

Abraço, e desculpas renovadas.
Dilita

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

São incontáveis, as matérias que já li sobre o terremoto que "arrasou Lisboa" em 1755....

Sinceramente, Manuel, criar um conto dentro desse contexto, não é para qualquer um...: MARAVILHOSO!

Que a semana, lhe seja mais pródiga, na sua criação literária (se é que é possível, ser mais!).
Beijo... desde o Ceará!



Unknown disse...

No meio de tanta desgraça acabou com raios de luz na cabeça do rapaz.
A sorte também tem os dias contados.

SOL da Esteva disse...

Um Conto com História e História com um Conto.
Se o Marquês de Pombal te lesse, estarias garantido por Escrivão Mor.
Mas, o que interessa é que o maior "abalo" do Gilberto terá sido a Filha do Taberneiro. Depois dos sismos sempre sobra uma cisma... que o Gilberto já tinha desde o seu "palheiro".
Muito rico, este novo Conto.
Parabéns, Manuel.


Abraços



SOL

Projeto de Deus 👏 disse...

Eu Adoro contos, e vc é uma fonte de inspiração pra mim, mas claro que não tenho seu talento!

Vá lê o meu conto rs!

Bjos meu querido!

Maria Luisa Adães disse...

Sabemos que vivemos num local sísmico
e isso dá que pensar a quem pensa!

E Manuel se lembrou de nos trazer o terramoto de 1755 com a história de um homem que no meio da desgraça, parece ter encontrado o lugar certo e a felicidade!

No caso dele, foi um mal que lhe trouxe a possibilidade, de uma mudança de vida para muito melhor.

O texto está muito bom e a intenção foi linda, em trazer a felicidade no meio da infelicidade, a um homem que nada tinha!

Parabéns Manuel

Bom fim de semana,

Maria luísa

Evanir disse...

Com muito carinho e infinita saudades
hoje mesmo com uma colinha estou passando
no seu blog . .
Espero que fique feliz como estou
por Deus ter me concedido essa força.
Um abençoado final de semana,
muitas bençãos para sua vida..
Beijos meu carinho.
Evanir..

CÉU disse...

Pensei k tinha novidades, aqui, Manuel (o seu nome é mesmo, Manuel?) É k o meu não é "Céu". Uso este pseudónimo, pke me agrada, só isso.
Bem, fico aguardando as suas lides escritas, e desejo-lhe um bom duche, entretanto. Depois, volte, já mais "calmo". Combinado?

BFDS.

Beijinho pra ser pra si.