quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Casa Amarela





Zulmira andava numa excitação pouco habitual.

Era uma mulher comedida e não exteriorizava facilmente as suas emoções, mas hoje não sabia o que se passava, pois sentia um calor no peito que a deixava um pouco descontrolada.

Olhou a sua figura no espelho do quarto e gostou do reflexo. Mulher seca de carnes, um pouco angulosa mas com todas as formas e capaz de fazer andar à roda a cabeça de qualquer homem.

Ainda há pouco ela reparou, quando foi ao merceeiro, a maneira como o cabo Meireles a olhou, percorrendo gulosamente cada contorno do seu corpo.

Fingiu não reparar mas sentiu uma sensação de gozo a percorre-la e a ficar um suave desejo de se deixar envolver em prazeres que há muito tentava disfarçar.

O seu homem, o Arnaldo, há muito que andava esquecido dos deveres que jurou na Igreja, pois a fidelidade e compartilha que lhe havia prometido andavam distraídos nos copos que engolia. Era rara a noite em que não parecia totalmente toldado pelos vapores da zurrapa que ele e mais outras da laia emborcavam na taberna do Zé da Corneta.

Mas hoje, ele tinha prometido, que as coisas iam voltar à normalidade. Não é que ela confiasse, mas havia sempre a esperança que o seu Arnaldo voltasse a ser o homem que sempre foi.

Antes não perdia tempos em bebida, mal acabava o trabalho voltava para ela e tinham noites quentes que a faziam andar nas nuvens e lhe mantinham um brilho invejável nos olhos.

De repente o encanto desapareceu, o marido que sempre teve mudou.

Ela pensa que foi o desgosto quando o Doutor Calheiros, depois de todos aqueles exames, lhe disse que Zulmira tinha um problema que não a deixaria nunca ser mãe.

Arnaldo mordeu os lábios, não disse nada mas ela viu as lágrimas que ele não soltou porque o desgosto as secou antes de nascerem.

Nunca mais foi o mesmo, estiolou todo o entusiasmo, definhou todo o interesse.

O homem alegre, amável e atencioso volatilizou-se no desgosto e foi na bebida que encontrou o conforto para o desconforto da notícia que lhe mudou toda a vida.

Mas hoje, Arnaldo prometeu, tudo ia voltar ao normal. Jurou que não ia beber, que ia esquecer os petiscos do Zé da Corneta e a pinga do João Nabo.

Ela acreditou e até foi, manhã cedo, acender uma vela no altar de Nossa Senhora das Candeias.

A tarde estava a cair e os primeiros resquícios da noite iam tomando conta dum dia que estava a acabar.

Tinha o jantar pronto, caprichou no arroz de pato, iguaria que o seu marido tanto apreciava.

As horas alongavam-se e o escuro enchia de sombras a rua. Todos os sons a despertavam e assomava ao postigo na esperança de vir surgir o seu homem.

Mas as horas passaram, o relógio da Igreja anunciou a meia-noite.

Zulmira chorou de raiva, a frustração era maior que o desgosto.

Foi para a cama e adormeceu a pensar no Cabo Meireles.

10 comentários:

Sónia da Veiga disse...

"Se não me agarram dou-lhe forte e feio", porque a Zulmira é minha amiga e não tem jeito o homem deixar de desejar a mulher só porque ela não lhe pode carregar a semente (se calhar o problema até é dele e o cabo ainda lhes faz o jeito e o herdeiro surge "por milagre"...)!!!
E se ele é assim tão fraco que não vê o futuro ao lado dela sem ser com putos na barra da saia (ou dando um lar a um que precise de amor e carinho), então realmente a semente dele não merece germinar, não!!!

Ludmila Ferreira disse...

Aii aii...

Seu Manuel. Seu Manuel...

Histórias são vividas assim por muitas...

Vivian disse...

...Fafá de Belém um dia cantou:

"se você me trai, outro
me distrai e fica
tudo bem"

rsrs

adorei passar por aqui!

bj, moço!

Magia da Inês disse...

Olá, amigo!
Passei para rever seu cantinho e
encontro uma história dessas...
Amei!!!
Boa semana!
Beijinhos.
Itabira
Brasil♥

Luna Sanchez disse...

A vela queimou toda, e o arroz ficou lá, esfriando, que nem a Zulmira...que pena!

Rs

Beijo, beijo.

ℓυηα

AFRICA EM POESIA disse...

Manuel
Obrigada meu amigo mas olha que 500 é difícil 1000 muito pior.
para ti um beijo GRANDE


a Zulmira é o retrato de muitas mulheres pelo mundo fora.
beijos

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel
Uma história muito bem contada.
Os copos e o desejo...nunca foram grandes amigos...

Beijinhos
Sonhadora

Magia da Inês disse...

Olá, Manuel!
Estou curiosa e gostaria de saber mais sobre a inspiração que você teve em alguns dos seus escritos.
Como faço para mandar um e-mail para você?
Desculpe-me a curiosidade... gosto muito, muito de ler...
Beijinhos.
Itabira
Brasil, que hoje infelizmente foi desclassificado.

Adelaide disse...

Muito bem Amigo Manuel,

Já sentia saudades de vir ao seu blog. Gostei da história da Zulmira, tenho pena do Arnaldo porque sofre e lá vai ele para os copos. O arroz de pato arrefeceu e a Zulmira, que contava com os carinhos do Arnaldo, adormeceu desgostosa. Gosto muito da sua maneira de escrever.

Abraço
Adelaide

Elaine Barnes disse...

Linda história amigo. Tão verdadeira...Quantas Zulmiras por esse mundão de meu Deus!Adorei a sensibilidade e a maneira como contou. Me envolveu totalmente amigo escritor e poeta! Montão de bjs e abraços