quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A troca




Quando desceu na estação pareceu-lhe ter aterrado num mundo diferente, aquele edifício enorme, apinhado de gente apressada que entrava e saia dos comboios dava-lhe a sensação de um mundo que não era o seu.

Tinha nascido numa aldeia perdida nos contrafortes de uma serra, onde quase nada da civilização ainda tinha chegado, apenas a televisão no café do Sr. Romão e uns jornais que apareciam quando as noticias já estavam gastas.

Agora estava aqui perdida e confusa na esperança que a senhora que a tinha contratado estivesse à sua espera. Fora o senhor Padre Zé que lhe tinha arranjado esta vinda para fugir a uma vida de pobreza que se lhe adivinhava.

O pai foi um bom homem mas uma doença, que o médico não sabia bem o que era, levou-o o quando ela tinha dois anos e a mãe, sem recursos, entregou-a à madrinha e foi em demanda de melhor vida. Nunca mais deu notícias.

A madrinha, Dona Carminho, era uma alma caridosa que vivia no medo do pecado, nunca tivera um homem na sua vida, a oração e a penitência era o seu maior alimento. Tratou da afilhada como se fora sua filha, nos princípios da Igreja e no temor a um Deus que um dia a iria receber e compensar pela sua conduta isenta de pecados libidinosos.

Quando completou 18 anos, Alice, pediu à madrinha para a deixar ir para a cidade trabalhar, pois ali na terra estava condenada a uma vida sem grandes expectativas.

-Mas Alicinha, exclamou a madrinha, na grande cidade é onde abunda o pecado que poderá perder a tua alma.

Mas, pensou, talvez se for o senhor Padre a tratar ele a pudesse livrar de todos os perigos que a cidade pode acarretar a uma donzela como a Alice.

E, foi assim que se viu no comboio com uma velha mala, com muitas autocolantes de hotéis, onde levava todos os seus haveres e pertences.

Ia para casa de um casal, pessoas de bem, onde iria servir e aprender todas as artes de uma boa dona de casa.

Havia de os encontrar, pois alguém estaria à sua espera com uma folha de papel com o seu nome escrito.

Deixou-se ir na vaga que abandonava o comboio a caminho da saída e lá estavam eles, um casal com uma folha encostada ao peito onde se podia ler ALICE.

Como ficou contente em ver o seu nome nas mãos de umas pessoas tão chiques.

Era uma senhora cheiinha de formas, um chapéu preto com umas plumas da mesma cor enfeitavam uma cabeça onde já se notavam alguns cabelos brancos. Ao seu lado um senhor todo janota, cabelo preto, com algumas cãs, penteado para trás, a que um fino bigode dava um ar de pessoa importante.

Quando os viu fez uma vénia, como o senhor padre lhe havia ensinado, e muito envergonhada disse:

-Boa tarde, sou a Alice uma vossa criada.

Deve ter-se saído bem, porque os dois sorriram, a senhora deu-lhe um beijo na face e o senhor estendeu uma mão muito bem cuidada.

Entrou no carro, nunca tinha andado de automóvel mas não teve medo. Os dois senhores nos lugares da frente e ela, depois de por a mala no porta bagagens, foi assim que lhe chamaram, recolheu-se no banco de trás.

O senhor devia ser muito habilidoso, pois andou por aquelas ruas desviando-se dos outros carros com muita perícia pois chegou a casa sem ter tropeçado com nenhum.

Já era tarde, aquela hora nos outros dias estava recolhida, mas a senhora mostrou-lhe a casa, nunca tinha visto nada assim a não ser nas telenovelas que espreitava quando ia ao café do senhor Romão comprar pastilhas de mentol para a madrinha.

A patroa, antes de a deixar num quarto que iria ser seu deu-lhe os primeiros ensinamentos.

-Olha Alice vou-te ensinar como nos deves tratar, a mim por Madame e ao meu marido por senhor Engenheiro, agora vai comer qualquer coisa e vai dormir, amanhã começo a ensinar-te os teus deveres.

Quando acordou estranhou o sítio onde se encontrava, não tinha ouvido o galo cantar nem o ladrar dos cães do senhor Vitorino. A pouco e pouco foi dando de si e levantou-se lista, antes que a madame pensasse que ela era uma preguiçosa.

Foi para a cozinha e esperou até que alguém lhe viesse dizer o que devia fazer.

Apareceu o senhor Engenheiro que a olhou de tal forma que ela se sentiu como se a despissem e a deixassem como viera ao mundo. Chegou a colocar as mãos à frente para que não lhe vissem as partes pudibundas, mas acalmou quando o homem lhe disse com uma voz amável:

-Vai preparando a mesa para o pequeno-almoço que a senhora está a chegar. Põe aqui mesmo na cozinha.

Ficou mais calma mas ainda sentia o rubor que lhe afogueava as faces.

Depois, foi aquela rotina que não lhe era muito estranha pois a madrinha Carminho muito lhe tinha ensinado sobre as lidas domésticas e a arte da cozinha.

***

Como o tempo passa depressa! Parece que chegou ontem e já vai fazer dois anos que deixou a sua aldeia a caminho desta cidade que afinal não é tão grande como as que agora vê na televisão que a madame lhe pôs no quarto.

Não sabe bem o que se passa mas hoje acordou indisposta, vómitos e um mau estar que não é habitual mas, esteve a pensar e pode ter sido das favas que comeu ontem ao almoço, estavam tão boas que abusou um pouco.

***

Foi no minimercado que o conheceu, a madame mandou-a comprar dois quilos de açúcar, e uma dúzia de ovos para fazer o bolo de que o senhor engenheiro tanto gosta e ele estava lá. Achou-o lindo e quando se lhe dirigiu corou como se tivesse sido apanhada a roubar o chupa-chupa a uma criança.

-Menina, sabe que é muito bonita? Será que a posso acompanhar a casa?

Ficou entabulada sem saber que responder, mas ganhou coragem para dizer

-A rua é livre, porque não! Pelo canto do olho foi observando o farto cabelo loiro do homem que caminhava a seu lado.

Era vendedor de produtos de limpeza, vivia com a mãe e uma irmã. Pediu para a voltar a ver pois, disse, gostou muito de falar com ela.

-Todos os dias por volta das cinco horas levo a Birrita a passear, se quiser pode acompanhar-me. Não posso demorar mais do que 45 minutos.

-Serve, melhor 45 minutos do que nada, respondeu alegremente.

E, nos dias que se seguiram Jaime estava de plantão postado em frente à vivenda aguardando, ansiosamente, por Irene.

As primeiras saídas foram de uma timidez confrangedora mas o tempo foi abrindo caminho a um afoitar de carícias e, enquanto a cadela cheirava e aliviava as suas necessidades, os beijos surgiram, primeiro em suaves e tímidos afagos e depois um pouco mais afoitos, quase em fúria.

Jaime olhando nos olhos a sua amada perguntou:

-Irene este fim-de-semana, na tua folga, podíamos ir os dois para um sítio lindo que eu conheço no Magoito, é a casa da minha avó, está às nossas ordens porque ela está agora na terra com as irmãs, podemos ir passear até à praia.

Irene ficou sem saber que responder, o coração dizia sim mas a razão parecia, querer complicar esta decisão. O coração venceu.

Há muito que não se sentia tão feliz.

Foi um fim-de-semana que nunca mais iria esquecer.

***

Foi a patroa que estranhou a mudança de comportamento da Alice e chamando-a de parte perguntou:

-Alice tens com algum namorado?

Corou até à raiz do cabelo, baixou os olhos antes de responder:

-Tenho sim madame há dois meses.

A patroa franziu os olhos, coçou o pescoço e sem a menor hesitação exclamou:

-Ou me engano muito ou estás grávida. Vai já à farmácia comprar o que te vou escrever num papel

-Eu? Disse Alice enquanto as lágrimas lhe escorriam pelas faces. Que vergonha madame, o que vai dizer a minha madrinha e o senhor padre?

-Vai à farmácia e depois pensamos no resto.

A madame tinha razão, os enjoos eram indício de alguma coisa.

O pranto de Alice encheu a casa. Chorou não por estar prenha, mas pela vergonha das pessoas lá da terra.

Dona Celeste com um ar muito maternal mandou-a sentar antes lhe falar:

-Ouve bem o que te vou dizer. Na tua idade e nas tuas condições um filho não vai ajudar nada. Não vais fazer nenhuma asneira, se tens uma criança dentro de ti, temos que tratar para que nasça bem, não podes pensar em fazer nenhum disparate.

-Credo madame, isso que está a pensar eu nunca iria fazer, disse Alice entre soluços.

Dona Celeste baixou a voz e enquanto lhe punha uma mão no ombro, quase que lhe segredou ao ouvido:

-Querida deixa vir essa criança que eu e o senhor engenheiro ficamos com ela e nada na vida lhe vai faltar. Sempre quisemos um filho mas Deus não nos deixou ter essa felicidade. Nós ficamos com a criança.

Alice enxugou as lágrimas e com uma decisão que nunca lhe tinham visto, fixou a madame no rosto.

-Isso não, a vida nada me tem dado, agora se me dá um filho eu não o vou enjeitar. Desculpe madame, mas melhor ou pior, o hei-de criar.

Levantou-se e foi para a cozinha arrumar a loiça que a máquina tinha lavado.

Quando às cinco horas foi levar a cadela à rua ia estudando o que devia dizer ao seu Jaime e estava receosa com a reacção. Foram descuidados e não pensaram que isto podia acontecer.

Jaime ficou radiante com a noticia, era o sonho da mãe, ser avó.

A filha esteve casada 5 anos e, seca como figo, nunca foi capaz de lhe dar um neto.

Jaime soltou uma gargalhada tão sonora que a Birrita começou a ladrar e foi preciso Alice afagar o bicho para se acalmar.

-Sabes Alice, disse Jaime, prepara as coisas para te mudares lá para casa, vou tratar com a mãe que te irá receber como se fosses uma princesa.

-Mas, respondeu Alice, temos tempo e posso trabalhar mais uns meses porque o dinheiro vai fazer falta.

-Bom, respondeu ele, então na tua folga vais conhecer a minha mãe e a minha irmã, vais almoçar connosco.

Foi recebida, efectivamente, como uma princesa. Nunca na vida se sentiu tão acarinhada, achou até exagero não a deixarem sequer arredar a cadeira.

-Não faça isso, gritou a mãe do Jaime, nada de esforços. Cuidado porque o meu neto tem que nascer forte e saudável. Tenho estado a pensar que se for menino vai ser Ernesto, como o meu pai e se for menina quero que se chame Susana, que é o nome que eu queria para a minha filha, mas o raio do pai quando a foi registar não me fez a vontade. Raios o partam que também não se gozou muito, a porra de uma doença levou-o para descanso de todos nós.

-Acho que não vão ser esses nomes, disse Alice, não gosto muito. Susana, vai que não vai, agora Ernesto nem pensar.

A mulher mordeu os lábios e teve que fazer esforço para se acalmar, olhou a futura nora com azedume antes de responder:

-Mas o filho também é do Jaime e ele não vai contrariar a mãe, por isso vá-se habituando aos nomes que eu lhe disse para quando chegar a altura não sofrer uma decepção.

Mas onde eu vim parar, pensou Alice, agora vem esta jarreta a querer decidir sobre o meu filho, isso é que era bom, vai ser ou André ou Mafalda e nada do que ela disse, sou eu que vai parir sou eu quem vai decidir.

***

O tempo passou depressa e Alice estava com uma barriga que já lhe custava a carregar e aceitou a oferta do namorado. Fez a velha mala, onde os autocolantes começavam a ficar tão desbotados que já era difícil adivinhar o que diziam.

A candidata a sogra recebeu-a como se a pequena divergência sobre os nomes fosse coisa do passado.

-Que barrigona, disse, certo que vai sair um grande rapaz. O nosso Ernesto vai ser a alegria desta família.

Bom, pensou Alice, a gaja está muito enganada mas deixa pensar o que quiser, na hora logo o vou registar como André.

Foi um parto difícil, o rapaz era grande e só com cesariana foi possível por cá fora o matulão.

Fizeram uma festa, Jaime, a mãe e a irmã estavam doidos para ver o bebé, quando a enfermeira o mostrou através do vidro ficaram em êxtase. Que lindo! Disseram em uníssono.

Na hora da visita foi a confusão, cada um falava para seu lado, ninguém se entendia. Todos queriam reivindicar a sua parte da criança, tão absorvidos que quase se esqueceram de quem o tinha deitado cá para fora.

A enfermeira deu por finda a barafunda:

-A mãe da criança precisa descansar, vão e amanhã voltam. Está bem?

***

Quando saíram, Alice pegou no telemóvel e ligou ao patrão. Esperou e quando a atendeu disse:

-Senhor Engenheiro é a Alice. Não quer vir conhecer o seu filho? É lindo e tem os olhos iguais aos seus. Não senhor engenheiro, não é do meu namorado, quando o conheci já estava grávida, E sabe de quem, não sabe? Não quero nada do senhor mas acho que tem o direito a conhecer o menino, porque também é seu. Nasceu ontem ao fim do dia. Estou na maternidade que o senhor sabe. Pois senhor Engenheiro é nessa mesma.

No dia seguinte, ao meio da manhã, lá estava o senhor Engenheiro, ansioso e ofegante.

-Alice essa criança linda é mesmo minha? Pensei….bom…estava convencido…

-Pensou mal, quando conheci o Jaime já andava com agonias e a madame já estava desconfiada.

-E agora? Perguntou o engenheiro.

-Agora que já o viu pode seguir a sua vida que eu hei-de criar esta criança. O Jaime pensa que é o pai e vai ajudar.

-Alice não quero isso, a relação com a minha mulher está podre e para ela e para mim o divórcio é a solução, aliás, eu e ela já tínhamos falado nisso. Se tu quiseres casamos os dois e vamos criar essa criança como um príncipe. Aceitas?

Fingiu pensar, torceu a boca, criou expectativa e exclamou:

-Aceito João. Posso tratar-te assim? Vou ter alta amanhã ao meio-dia, os outros vem para a visita as três a essa hora já não penso estar aqui. Vens-me buscar?

Sorriu, com um sorriso baboso antes de dizer:

-Podes crer meu amor, vou tratar da nossa futura casa. Amanhã ao meio-dia aqui estarei.

***

Deixou sair o ex-patrão pegou, outra vez, no telemóvel e ligou para o Jaime:

-Jaime não te queria dar este desgosto mas não sou capaz de te enganar, tens sido muito bom para mim e não mereces que eu te engane. O menino não é teu é do meu patrão, quando te conheci já estava grávida mas não tive coragem para te dizer. Não venhas mais porque é pior para os dois, mas juro que gosto muito de ti.

Jaime chorou e a mãe quando soube, desabafou:

-Aquela cabra nunca me enganou, mas tu continuas parvo como sempre.

****

E dois anos vão passados, Alice é agora a mulher do senhor Engenheiro e o André está um rapagão que é um regalo.

A mãe afagou-lhe os abundantes caracóis louros e sussurrou:

-Tens o cabelo lindo como o teu pai, nunca o vais conhecer mas assim é melhor para ti.
Tens uma vida e um futuro e com outro não tinhas nada, além de uma avó maluca.

Espero que me perdoes.


8 comentários:

Menina do cantinho disse...

Bem, as voltas que isto deu.
Manuel, mais uma história fantástica. Parabéns!
Pergunto-me, quantas farão isto?

Beijinhos

José María Souza Costa disse...

Belissimo. Agradavel de ler
Passei aqui lendo o que tem pra ler. E observando o que tem para observar. E Exaltando o que tem de ser Exaltado. Estou lhe desejando um Tempo de Harmonia e de muita Inspiração. Entendo ter um blogue Agradavel, muito bom e Interessante. Eu, também tenho um. Muito Simplório por sinal. E estou lhe Convidando a Visitá-lo e, mais. Se possivel Seguirmos juntos por eles. Estarei Muito Grato esperando por Você lá.
Abraços de verdade e, fique com DEUS

Magia da Inês disse...

♥ Olá, amigo!
Passei para uma visitinha e para desejar um bom fim de semana com muita paz e saúde.
Amei o nome da cachorra: Birrita...
Amigo, desta vez tu me supreendestes... menina bobinha do interiorzão... mais danadinha que as da cidade grande... muito bom esse conto... amei mesmo!!!
Beijinhos.
Brasil ♥
♥♥ °º
° ·.

Sónia da Veiga disse...

UAU!!!

Ainda estou zonza de tanta reviravolta!!!

Mulher expedita, caneco!

É por estas e por outras que defendo que o último nome das crianças devia ser o da mãe - é a única garantia que têm na vida!!! ;-P

Guma disse...

Olá estimado amigo Manuel.

Gostei imenso deste conto que deu muitas voltas, acabou em bem, e nos mostra como se enganam os que pensam que alguém vindo de uma aldeia perdida do interior e um aspecto de sonso, não ter a esperteza de engendrar uma trama complicada.

Manuel... pegue na ideia de editar seus contos. Quando o fizer, não permita que lhe mudem uma vírgula.

Forte e sincero kandando.

Magia da Inês disse...

Oi, amigo escritor!
Aguardamos nova publicação... impacientes!....
Beijinhos.
Brasil.
✿ܓܓ ♫
°º
•*• ♫° ·.

Luz disse...

Caro Manuel,
Mas que conto este! É de nos deixar a pensar em como a vida dá voltas e, as pessoas como também dão tanta volta e, com que fins..., este conto é um exemplo fantástico disso mesmo! As voltas que aqui deu é fantástica, ainda estou aqui às voltas...
Está de Parabéns, sem dúvida, excelente!

Beijinho com amizade

Menina do cantinho disse...

Hoje lembrei-me deste conto e tive que voltar a lê-lo. É mesmo fantástico. Parabéns mais uma vez :)

Já agora, tem um selo no meu cantinho e bem merecido.

Beijinhos
Bom fim de semana