A tarde estava fria e
os cães ladravam numa agitação pouco habitual.
Permanecia junto à
lareira e o crepitar dos troncos não lhe deixavam vontade de ir, lá fora, espreitar
o que mantinha os animais no desassossego. Talvez algum animal desconhecido, uma
raposa ou, o mais certo, alguém que não é bem-vindo por estas bandas.
O melhor é vestir o
capote, pôr um gorro na cabeça e agarrar a caçadeira, não vá o diabo tecer
alguma surpresa.
Abriu uma nesga da
porta e o ar gélido ia-lhe fazendo cair o nariz, olhou sem nada descortinar.
Saiu para o terreiro,
os cães continuavam numa inquietação mas, quando o viram, quase por encanto se
encolheram e soltaram uns pequenos ganidos de medo ou inquietação.
Olhou em redor e, de
repente, viu um vulto que o deixou arrepiado, sentiu como que um choque que
começou nos braços, desceu o corpo e lhe tolheu as pernas.
Era algo de irreal,
vulto negro onde dois olhos, cor de fogo, chispavam.
Apontou a arma e fez dois disparos
para amedrontar, mas a estranha figura, abriu os braços e agitando as mangas da
capa preta, desapareceu nos ares como se fosse um morcego.
*******
Voltou ao quente da
lareira, não sem antes aferrolhar com muito cuidado todas as portas e janelas.
A noite não foi fácil,
acordava com a sensação de medo e ao mesmo tempo tão irreal.
Levantou-se antes do
Sol, os cães estavam calmos, preparou um bom pequeno-almoço antes de se por a
caminho do povoado.
Tirou o Jeep do
barracão que lhe servia de garagem, soltou o Boca-Negra que saltou contente
para o lugar da frente e partiu a caminho da vila.
Estava frio, mas os
primeiros raios de sol ia amenizando o ar.
Parou à porta da
igreja, ia falar primeiro com o padre Esteves, contar o sucedido e tentar conhecer
a opinião de uma autoridade nestas matérias, pois ninguém melhor do que um
padre para assuntos do sobrenatural.
*******
Notou que estava a
fazer esforço para não se rir, franziu a cara e colocou a mão na boca para se
conter.
-Padre Esteves, não
percebo a sua atitude, vim pedir ajuda e conselho e, afinal, ainda estou a ser
alvo de chacota. Que se passa consigo?
O padre, tentou suster
o riso, mas não conseguiu.
-Sabes Carmelo, és
muito bom rapaz mas quando bebes desatinas como os outros. A bebida provoca
alucinações, e foi o que aconteceu. És mesmo lixado, homens morcegos a voar nas
tuas terras, tem cuidado senão ainda vais para o Guiness.
Ficou pior que
estragado, era triste não ter provado um gole de qualquer bebida e estar a ser
acusado de bêbedo. Por estas e por outras é que as pessoas se estão afastar da
Igreja.
Ia voltar à quinta,
carregar a arma com zagalotes e ficar de atalaia a ver se aquela assombração
tinha coragem de aparecer. Metia-lhe dois tiros nos olhos, todos iam acreditar
e o descanso voltava aquelas paragens.
Meteu-se no carro e
voltou a casa, o Boca-Negra continuava encolhido, o que não era habitual.
Quando parou o carro ao
portão ficou estarrecido, os outros cães, estavam esfolados e pendurados no
varal onde costumava suspender o porco na matança. Espectáculo macabro, os
bichos com as fauces escancaradas pareciam coisas do outro mundo.
Aqui o medo passou a
fazer parte deste cenário, ficou de tal forma que nem conseguiu tirar os
animais e abrir uma cova para os enterrar, a noite estava próxima e não queria
arriscar, hoje o Boca-Negra ia dormir dentro de casa, coisa de que ele tanto
gostava.
Encheu a lareira de
grossos troncos, ia estar uma noite fria, trancou o ferrolho e, lembrando uns
filmes que tinha visto, pendurou réstias de alhos nas portas e janelas e
colocou o crucifixo, que estava no quarto, em lugar de destaque bem em frente à
entrada.
A noite foi calma, não
sentiu barulhos ou algo que lhe perturbasse o sossego do sono.
Acordou antes do Sol
raiar, abriu a porta ao cão para o animal ir satisfazer as necessidades, mas o bicho
olhava a abertura e nem sequer se aproximou, ficou de cauda encolhida fitando o
dono.
Resolveu sair para ver
se assim o Boca-Negra se decidia, mas a surpresa foi dele, os cadáveres tinham
desaparecido, nada de cães.
Agora, pensou, é que o
safado do padre vai julgar que eu ando mesmo a beber, se eu lhe contar que
encontrei os cães naquele estado e de manhã foi como se nada tivesse
acontecido, vai ser lindo. Vai ficar com aquele sorriso sacana que tão bem
saber fazer e, eu, mesmo sendo amigo sou obrigado a dar- lhe um sopapo no
focinho.
-Vida minha, que hei-de
fazer? Desabafou.
Não tinha explicação,
matar e esfolar três cães de grande porte não era tarefa fácil, além de os
pendurar daquela forma, pesados como deviam ser, parecia de mais para uma só
pessoa. Havia, no entanto, um pormenor que lhe fazia confusão, toda essa
carnificina e nem um pingo de sangue se notava.
Aqui havia coisa, oh se
havia! Agora tinha a certeza do que tinha visto. Era mesmo verdade, o diabo
andava por ali.
Precisava da ajuda do
padre, ele devia saber como lidar com mafarricos, mas o maricas, na última vez,
ainda se riu e tratou-o como a um simples bebedolas.
********
A coisa estava a ficar insuportável e o medo começava a tomar conta da
situação. Nunca teve receio dos humanos e sempre soube resolver todos os
problemas por mais difíceis que elas fossem mas, agora, era algo que não sabia
controlar. Nunca tinha acreditado no sobrenatural mas neste momento começava a
ter outra visão.
Pediu ajuda ao padre, decerto com maior formação nestes assuntos e, foi acusado de ter visões ou de ter bebido o que o magoou muito pois nunca foi homem para abusar.
Estava, quase em pânico, mas ia manter a calma e tentar uma solução que estava
a germinar na cabeça.
Manhã cedo ia a caminho da cidade para comprar tudo o que precisava e, com
sorte, o plano iria resultar, tinha a certeza.
Ia usar os conhecimentos que tinha adquirido na tropa e ia montar uma ratoeira
à “Coisa” que o andava a atormentar.
Foi difícil comprar tudo o que precisava, teve mesmo que inventar a necessidade de destruir umas rochas na propriedade, mas lá conseguiu tudo o que necessitava.
Amanhã ia por mãos à obra, hoje já se estava a fazer tarde e a criatura podia aparecer, tinha que se trancar em casa, e proteger tudo com o crucifixo e os alhos.
Ia dormir com a caçadeira nas mãos e ao mais
pequeno ruido, não hesitava ia, mesmo, disparar.
*****
*****
A noite foi tranquila, dormiu no sofá da sala com o Boca-Negra deitado aos seus pés.
Bem cedinho meteu mãos à obra, abriu buracos onde enterrou as cargas de explosivos, colocou os detonadores, guiou os diversos fios para uma bateria que escondeu em casa e que iria conduzir a electricidade, suficiente, para provocar a explosão.
Foi meticuloso, nada ficou à vista, a terra
foi reposta e alisada.
*****
Esperou com impaciência o fim do dia, custava a acreditar mas, pela primeira vez rezou para que a besta aparecesse. Janela bem aberta e bem atento a todos os movimentos. O tímido Sol há muito tinha desaparecido e tudo continuava calmo, começava a desesperar, tanto trabalho para nada.
O Boca-Negra, de repente, começou a ficar inquieto, o vento apareceu como por encanto, um verdadeiro espojinho tomou conta do largo, um riso demoníaco entoou, o cão desapareceu latindo que metia dó. No meio do terreiro a execrável figura, bramia as membranas de forma assustadora, olhos chispando, mãos ameaçadoras com garras sinistras apontando na direcção do Carmelo.
Era o momento, ligou a bateria e o estrondo foi enorme, os vidros saltaram das janelas, a poeira encheu o espaço num cogumelo de terra e pedras. A criatura foi apanhada em cheio, levantou num voo, como um avião ferido de morte, asas em chamas e desapareceu no horizonte.
Carmelo respirou de alívio,
amanhã ia reparar os estragos e esconder o que desse a conhecer o que tinha
acontecido.
Dormiu tranquilo, como há muito não acontecia.
***
De manhã, com o tractor, ajeitou o melhor possível os estragos, praticamente nada se notava, só faltava repor os vidros.
Meteu-se no carro e abalou a caminho da vila, hoje sim, ia mesmo beber uns copos com os amigos.
Entrou no Café do Zé Gago e estranhou o comportamento de todos, sisudos e distantes:
-Mas o que se passa por aqui? Isto parece um velório.
Ti Chico, que estava encostado na esquina do balcão, explicou:
-Já entendi, que não estás a par do que aconteceu! Encontraram hoje, de manhã, o padre Esteves morto á porta da Igreja, todo queimadinho, negro que nem um tição.
Dormiu tranquilo, como há muito não acontecia.
***
De manhã, com o tractor, ajeitou o melhor possível os estragos, praticamente nada se notava, só faltava repor os vidros.
Meteu-se no carro e abalou a caminho da vila, hoje sim, ia mesmo beber uns copos com os amigos.
Entrou no Café do Zé Gago e estranhou o comportamento de todos, sisudos e distantes:
-Mas o que se passa por aqui? Isto parece um velório.
Ti Chico, que estava encostado na esquina do balcão, explicou:
-Já entendi, que não estás a par do que aconteceu! Encontraram hoje, de manhã, o padre Esteves morto á porta da Igreja, todo queimadinho, negro que nem um tição.
Pobre
homem!
14 comentários:
Agora, depois de ler a estas horas (22:24) este conto eu é que não vou dormir.
Não esperava um final deste e olhe que eu gosto de textos como este.
Numa palavra - Fantástico!
Beijo
Laura
Coitado do padre minha Nossas Senhora!
Mas um conto espetacular Manuel. Parecia cinema.
Bjs meu amigo.
Coitado do padre para o que lhe havia de dar...
Será que era gay e andava a preparar o terreno...?
Que "coisa".
Confesso que tive um certo medo, mas não pensei que fosse o Sr. Padre.
Conseguiste me surpreender.
Beijinhos e um final de semana repleto de paz, sem coisas pra atrapalhar.
Que conto heim...Perfeito. Como sempre adorei. Bjos achocolatados
Nunca li um texto sem pestanejar!
Formidável! Cheguei a pensar, que fosse o Padre mas, como não acredito em assombração!!!!
Bom demais,Manuel!
Um beijo,
da Lúcia
Pergunta: como é que ele desapareceu nos ares como um morcego?!?
E que raios de padre é esse que esfola cães?!? E como é que fez isso se estava a falar com o Carmelo na igreja?!?
Isso vai haver sequela ou é de mim?!?
Beijinhos e bom Domingo,
Sónia
°♪¸.♫♫♪
Amigo, fantástico!
Esperava qualquer desfecho menos esse!!!
Boa semana!
Beijinhos.
Brasil
❤♪¸.•°`♡
Manuel, Amigo
Não paras de surpreender. Afinal, é esse o interesse.
Jamais pensei adivinhar ser este o personagem.
Coisas! Assim se concretiza o dito: "com os espíritos posso eu. Cuidados, é com os humanos!".
Boa!
Abraços
SOL
http://acordarsonhando.blogspot.pt/
Olá amigo Manuel, isso é que é imaginação. Então não é que eu nunca suspeitei do padre? Virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Adorei o conto e ainda bem que ainda faz Sol senão quem não dormia era eu. Beijos com carinho
Minha nossa meu amigo!!!!
Que conto incrível!!!!Fiquei presa á leitura!Toda arrepiada!Ainda bem que é dia!rs Não leria à noite...
Uma figura apavorante!E era só o padre!Sempre a surpreender!!!
Beijos e meu carinho!
Querido amigo
Senti pena do padre tbm. Mias valeu a pena o conto. Uma feliz semana para vc com carinho
Ana Brisa
Pobre padre...Que conto heim amigo...Nossaaaa...Como sempre perfeitos. Bjos achocolatados
Manuel
um beijo...
sem palavras
estive lá.
senti...dor.
beijos
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