quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Senhor Tobias









A situação estava difícil, as convulsões sociais eram a causa de muito do que acontecia e de tudo o que estava para vir.

Dona Brites não conseguia compreender as razões, porque o pobre do marido, Tobias da Silva, estava condicionada nos pensamentos políticos que o norteavam. Era um homem de convicções, quase um sonhador, pois tinha na sua imaginação, que um dia os homens podiam expressar livremente as suas ideias e ideais, sem medo da polícia política. que parecia nascer em cada esquina das ruas da cidade.

Hoje, ainda a manhã não tinha rompido e já tinham levado o pobre homem e alguns livros da sua estante, a caminho da Rua António Maria Cardoso, onde ia ser sujeito a tortura e humilhações para denunciar pessoas, que ele próprio não conhecia, mas para a Pide, quem tinha ideias mais progressistas fazia, decerto, parte de alguma organização tenebrosa preparada para por em causa este Estado Novo, que era tenaz a manter a mordaça em todos os que suspiravam pela democracia.

Em norma, passados oito dias, voltava a casa mais velho e muito desgastado, mas mais convicto da justeza dos seus anseios.

Naquele dia vieram ao cair do dia e o desgraçado do Tobias, mais uma vez, foi manietado e arrastado como se fosse o mais perigoso facínora.

Era um pobre homem, magro e indefeso, que aqueles algozes, meteram numa carrinha que desapareceu no escuro da noite.

Voltaram os interrogatórios violentos, sem nexo, a tortura de horas intermináveis em pé, os sonos proibidos para amolecer as vontades e quebrar a resistência dos mais tenazes.

Tobias já tinha sentido todas as torturas, sempre resistiu sem um queixume, sem um lamento e sem abrir a boca para pronunciar uma palavra.
Mas hoje eram de mais, as tremuras e o mau estar sobrepunham-se ao cansaço.

A idade e a forma como lhe iam moendo o corpo, para lhe chegarem ao pensamento, estavam a tirar-lhe a noção do local, a quebrar a pouca força física que ainda lhe restava.
Queria morrer, desejava que o deixassem dormir!

Fechou os olhos, perdeu o conhecimento e desfaleceu pendurada nas correias com o que mantinham amarrado.

Já não ouviu, alguém, gritar:

-Levem esse gajo, já deu o que tinha a dar!

Não percebeu nem sentiu mas, parece que tinha conseguido a liberdade sonhada.

*****

Desta vez dona Brites estranhou tão grande ausência.
Arrastou as dores que faziam parte do seu dia-a-dia e foi saber notícias do seu homem.

Dias e dias e sempre a mesma resposta, nunca tinham ouvido falar nesse senhor Tobias Moreira da Silva, naqueles serviços nunca entrou.
Devem estar a fazer confusão!

                                                                 
Dona Brites insistiu e foi ameaçada.
Tinham muito que fazer e não podiam estar a aturar os devaneios de uma mulher que perdeu o marido.
Se voltasse ia arrepender-se!

Ela consultou um advogado, pagou 10 contos de réis, para nada pois quando voltou a saber noticias o advogado aconselhou:

-Não se meta com essa gente! Não vale a pena. O seu marido já não deve estar vivo e o corpo nunca vai aparecer!

*****

A existência sem o seu Elias era diferente, não era vida. Quando estavam juntos e, foram 18 anos, sentia que estava completa, o marido preenchia a sua vida, pelo amor, pelo carinho e pela forma boa e plena, como completava todos os instantes da sua existência.

A política era a única discordância no seu quotidiano, ela não concordava com essa ideia do marido, querer mudar o que era imutável, o regime já existia há três décadas e estava firme e controlava tudo e todos, como podia um homem fraco e indefeso, como o seu Elias, mudar o que os fortes e poderosos não conseguiam?

Agora estava só, vivia das recordações, das memórias e de uma dor de nunca ter feito o luto de um marido, que sabia morto mas queria pensar que ainda podia estar vivo.

  ****

Quando o telefone tocou, tão cedo, arrastou as dores que lhe tolhiam o corpo, e atendeu.

-Olha Brites houve uma revolução e o regime caiu! Gritou o cunhado do outro lado da linha.

-Oh Jorge e isso é bom ou mau? Perguntou na sua ingenuidade.

-Todos esperam que seja o princípio da liberdade porque o Elias tanto lutou e, também, tenho a esperança que agora consigamos saber o que lhe aconteceu. Vamos fazer o nosso luto e o funeral que anda dentro de nós!

******

Estávamos no final de Abril de 1974, numa bonita tarde de primavera, quando uma pancada na porta despertou dona Brites, do cochilar a seguir ao almoço.
Como o ouvido já lhe ia pregando partidas, aproximou-se e espreitou pelo ralo da porta.
Estava alguém no outro lado.

Abriu uma fresta protegida pela corrente segurança.
Devia ser um mendigo, era habitual aparecerem.
Coitados que havia de fazer?

-Espere um pouco, disse com voz triste, vou ver se tenho alguma coisa para o ajudar!
O homem, do lado de fora, curvado, roupa desalinhada e com uma velha boina bilbaína na cabeça, numa voz cansada gritou:

-Abre a porta amor! Tenho saudades tuas e da nossa casa.
 Abre!

Estou há muito tempo preso!

Suspirou.

 



19 comentários:

JP disse...

A nossa libertação é que parece que ainda vai demorar. Também já estamos presos há muito tempo.

Abraço

Unknown disse...

Uma contribuição para a história do 25 de Abril.
Tantos...tantos... de quem se perdeu a sombra e o rasto só porque um dia sonharam liberdade...

Agradeço estes apontamentos.

Anónimo disse...

Olá, estimado Manuel!

Quando comecei a ler o texto, já se adivinhava um final feliz.
Foi inventado ou baseou-se em algum caso já conhecido?

Na família da minha mãe, houve um caso, que passo a referir: um padrinho dela e das outras irmãs, estava bébado e começou a gritar contra Salazar, isto junto à GNR.
Esta deteve-o, bateu-lhe e mandou-o para casa, porque estava bébado. A minha mãe e tias, que andariam pelos 17/18 anos (finais da década 50) foram à GNR e disseram aquilo que lhes apeteceu e até pontapés deram nas paredes. Dois guardas, disseram-lhes: vão-se lá embora, moças, porque vocês não sabem o que estão dizendo, são umas moças pequenas.
Bandidos, ladrões, bateram no nosso padrinho. Este faleceu, de tuberculose, passado um ano, mas elas ficaram sempre a pensar que a tareia tinha acelerado a tuberculose, quando medicamente, foi dito que não. Ele é que nunca quis deixar de beber.

Imagine daqui a 30 anos, quem fizer a História e falar do período político atual, como o fará? Cada um a seu jeito, por isso é que a História nem sempre é credível.

Uns dirão: andava toda a gente morta à fome, ninguém tinha nada,
uma bica, era para dois, tinham de ir pedir alimentos às instituições, muito desemprego, enfim, enfim...

Eu direi, se for viva: as pessoas esbanjaram durante tantos anos, que o governo da altura, teve de impor medidas sérias e rígidas, visto que Portugal, todos nós, tivémos de pagar aquilo que devíamos. Portugal não era um país isolado, fazia parte de uma comunidade, onde havia países mais ricos que nós e que nos emprestavam dinheiro, que nós tínhamos, naturalmente, de pagar.

De qualquer forma, as pessoas continuaram a encher centros comerciais, a andar de carro, a ter telemóveis topo de gama, tablets e a recorrerem, e aqui reside o ambíguo e o paradoxal, a instituições para lhe darem alimentos, mas, e ainda ontem eu presenciei o seguinte: uma mulher fumava um cigarro antes de se aproximar da instituição onde lhe iriam dar os alimentos de que DISSE carecer. Como ela estava ao telemóvel, fui tendo atenção àquilo que dizia e o que mais me chocou foi quando ela proferiuu a seguinte frase: então, o que é que tu queres que eu faça? Se não vier cá, se não aceitar as coisas, depois isto vai ser uma bola de neve e lá se vai tudo.
Percebi, perfeitamente, o contexto.
Esperei que ela entrasse e recebesse aquilo de que NÃO precisava. Saíu e andou uns 200 metros e eu atrás dela, dirigindo-se depois para um caro, BMW.
Isto eu vi e assisti. Será isto e outras situações, que conheci, que contarei aos vindouros.

Sei que há casos onde não se vive uma situação tão desafogada, como dantes, isto é, já não dá para ir de carro ao café, que ficava ali, mesmo à esquina, perto da casa deles e já só fumam 20 cigarros, por dia, quando antes fumavam, quase o dobro.
Sei que há gente, onde marido e mulher estão no fundo de desemprego e vão, TODOS OS DIAS tomar o pequeno almoço ao café e têm duas crianças, dois filhos, que pedem, como é natural, isto e aquilo, e eles vão cedendo. Todos os dias pagam cinco ou seis euros. Então, não seria mais proveitoso e lógico tomarem o pequeno almoço em casa?
Cada um deles, tem carro, porque quando trabalhavam, dava-lhes jeito levarem carro, porque passavam pelo infantário, e depois até iam fazer compras, à hora de almoço, ao centro comercial Vasco da Gama, onde pagavam estacionamento, obviamente.

Enfim, tanto coisa que eu terei para contar, se ainda for viva. Se Deus quiser, e com a esperança de vida a aumentar estarei pelos 70, o que me faz acreditar que talvez ainda tenha lucidez e vida para o fazer.

O seu conto, como sempre está bem descrito, de maneira simples, mas não simplória e cria, no leitor, sempre entusiasmo.

Tenha um dia muito feliz, com desejo para mim.
Já choveum e agora está um sol muto tímido, em Lisboa.

Beijo, com estima, da Luz.

Bloguinho da Zizi disse...

Ahh !!!
Quantos não voltaram, não é?

O que me dói é saber que os que lutaram pela liberdade, hoje estão à mercê de um sistema tal o que passou.

A Dona Brites ainda teve um consolo: o Tobias voltou.

Seria esta uma história verdadeira?

abraços

Anónimo disse...

Olá, estimado Manuel!

Obrigada pela visita à "minha" biblioteca e pelo beijinho.

Estou intrigada, porque esta manhã, deixei no seu blogue um grande comentário, mas não o vejo por aqui.

Caso não tenha chegado, eu faço outro. Não há problemas.

Beijinho da Luz.

Flor de Lótus disse...

Oi,Manuel!Que bom que este lutador teve a oportunidade de voltar pra casa tantos outros como ele nunca mais voltaram e nem se sabe onde foram parar seus restos mortais.E vivemos numa era que ninguém sabe valorizar a liberdade que tem e aqui no Brasil ainda tem gente que acha que no tempo da ditadura era melhor,nem sabem o que estão dizendo.
Beijossss

SOL da Esteva disse...

Um belo Conto, Manuel!
Quem me dera poder bater na porta da casa e dizer o que o Elias disse.
Parabéns por relembrares que continuamos numa outra Ditadura.
Dá que pensar para se acordar do sono.
Um dia, chegar-nos-á a Liberdade e a Justiça; só não sabemos quando.


Abraços


SOL

http://odeclinardosonhos.blogspot.com disse...

Apesar de pequenita como eu me recordo de pela calada da noite e muito em surdina o barulho do rádio no quarto dos meus pais passando notícias que de maneira nenhuma podiam ser ouvidas na rua...
Depois, numa madrugada ditosa ouvimos a musica da terra onde nasci, a grande notícia foi dada, ficámos felizes, vivemos na ilusão... e agora? Será que não serviu para nada todo o sofrimento vivido por alguns?
Abraço amigo

chica disse...

Vim agradecer os votos r estamos nos matando de estresse por aqui,sr...Todos os dias, praia, banhos de mar, passeios.Eta vidinha ruim essa,rsrs abração praiano!chica

e hoje, comemoramos aqui, 44 anos de casamento!

Anónimo disse...

Olá, estimado Manuel!

Obrigada pleo deu gracioso e terno comentário.

Bom fim de semana.
Beijinho da Luz.

Anónimo disse...

NÃO PUBLIQUE, P FAVOR:

Estive a ler o seu perfil, pela 1ª vez, hoje, e fiquei baralhada, porque me parece uma pessoa mto feliz e realizada.
Claro que não quero k me conte a sua vida, mas fiquei a pensar, acredite. Então há lá uma frase, que diz tanta coisa.

beijinho.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Manuel

Uma história que aconteceu com tanta gente, que nunca esqueçamos que esse tempo existiu e não queremos que volte novamente.
Como sempre adorei.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Sandra Gonçalves disse...

Que bom que ele voltou amigo. Adoro ler seus contos. Me inebrio com eles. Vc escreve como ninguem. Parabens ta?
E obrigada pelo carinho e por nunca ter deixado de visitar Meu Aconchego. Bjos achocolatados

Evanir disse...

A saudade é a maior prova do que o passado valeu a pena nossa grande amizade
e o tempo vai passando os laços se tornam cada dia maior.
Agradeço por estar presente nos bons e nos maus momentos.
Aqui passei os melhores 7 anos de minha vida, fiz amigos, muitos dos quais,
me acompanharão para sempre.
Por isso tenho que comemorar a vida sempre.
Devo esquecer aqueles que me impuseram obstáculos infundados e agradecer àqueles que me impulsionaram adiante.
É hora, mais do que nunca, de valorizar as amizades e os conhecimentos adquiridos aqui.
Esse é um momento especial! É hora de olhar para trás e ver por tudo o que já passei.
Sem dúvida, muitas tristezas e conflitos mas, felizmente, por inúmeros bons momentos,
de alegria, de vitórias e de amizade sem Fim.
Esta tudo em paz estou voltando aos poucos
meu carinho por é muito grande você sua amizade me da a coragem
que preciso para continuar
lutando vivendo sorrindo e amando.
Um feliz final de semana beijos na sua alma,Evanir.

Maria Lucia (Centelha) disse...

OLá meu querido Manuel, contista amado que me ensina como se escreve e como se deve escrever pra mexer com os pensamentos e sentimentos de quem o lê!

Céus, o seu conto narra uma situação adversa de todos aqueles que tentaram ir contra qualquer regime político do país em que vive. Claro que aqui pelo Brasil também nunca foi diferente. Falo da época da "ditadura", em que tantos sofream torturas e ou desapreceram pelas sombras do desconhecido...

Emocionei-me como sempre, ao ter teus escritos!

Beijos com admiração de uma brasileira que te quer muito bem, apesar da virtualidade!

Lu...

Anónimo disse...

Olá, estimado Manuel!

Como tem passado?
Ah! Agora, o lápis que tem na mão, já é vermelho, portanto já sobressai na imagem.

Passei por aqui, porque já tinha saudades suas e também porque quero desejar-lhe uma boa semana.

Beijo da Luz, com muita amizade.

Laços e Rendas de Nós disse...


Há histórias de crueza nas prisões do Estado Novo. Há histórias de sonhos que mantiveram, de pé e vivos, os homens aprisionados.

Hoje, há histórias de torturas e mortes anunciadas por nos estarem a roubar Abril.

E suspiro.

Beijinho, Manuel.

Laura

Janita disse...

Lindo este seu conto, Manuel, mas que me deixou com um mal-estar profundo, como algo que ficou inacabado...nem lhe sei explicar bem o quê!
Tanta gente sofreu, tanto sonhámos com a Liberdade, tanto vibrámos com a Revolução, com a Democracia a ansiada liberdade de expressão e afinal, após quase 40 anos, sinto-me a regredir no sonho e no desânimo.
É triste ver o desmoronar das ilusiões!
Um beijinho.

Vivian disse...

Ah!Manuel!
Já estava acreditando no triste fim deste homem corajoso!Mesmo tendo passado por horrores...que bom que ele voltou!Acredito que mesmo que possam nos manter presos,não podemos deixar que quebrem nosso espírito, nossa vontade de lutar pelo que é certo!Pois é...também acredito que todos devem expressar livremente suas opiniões!Pode parecer utopia...mas prefiro assim.
Beijos!!!!