quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A nega









Vinha aos ziguezagues, punha um pé e ficava em suspenso como que 
a pensar aonde devia por o outro. Cambaleava como se o peso do corpo não estivesse distribuído.

De vez em quando, parava como se estivesse a analisar o ondular do passeio, parecia mesmo o mar, com ondas suaves mas que tão facilmente o desequilibravam.


Não, não pode ser! Só bebeu uma garrafa, de tinto, e ele não é homem para se deixe vencer com uma dúzia de copos.



Encostou-se a uma ombreira e esperou, que o chão,  sossegasse e que a cabeça se deixasse de rodopios.



Bebeu, reconhece que bebeu, mas não foi assim tanto, se calhar caiu na fraqueza, não comeu nada, não tem apetite.



Não era assim, sempre gostou de uma pinga, mas sem abusos, só para acompanhar algum amigo.



As coisas mudaram quando a Celeste, um pouco desvairada, lhe disse que estava farta e que se ia embora, tinha outros planos para a vida, não estava para aturar bêbedos, limpar porcaria e aturar ressacas de hálitos avinhados.



Ele nem queria acreditar, a Celeste, sempre tão calma e compreensiva com modos tão delicados, e, de repente, salta-lhe a mola e dispara em todas as direcções.



Mas ele não acreditou, aquilo passava, ia até ao tasco do Chibo e, quando voltasse, a Celeste, já estaria calma e mansa como sempre.



Hoje só ia beber um copito,  para molhar a garganta e depois comprar umas flores, quando chegasse a casa fazia uma surpresa e a Celeste, coração mole, esquecia as ameaças e tudo ficava bem.



Pensou! Lá pensar pensou, mas a seguir a um vieram outros copos, o cérebro embotou, as pernas deixaram de obedecer e saiu, como sempre aos tropeções, num ora cai ora não cai.

O caminho é o mesmo mas, agora, parece estar mais o serpentear de um qualquer carrossel.


Finalmente a casa, a porta estava a brincar com ele, pois cada vez que apontava a chave, o buraco da fechadura não ficava quieto, foi uma luta mas, mesmo emborrachado, ganhou. Depois de muitas tentativas conseguiu.

Só agora se lembrou das flores que afinal não comprou, não faz mal compra amanhã.


Afinal, a Celeste, cumpriu a promessa, não está em casa.      Não compreende como teve coragem, sempre foi um bom marido, nunca a tratou mal, sempre carinhoso, apenas aquele pequeno problema  e, depois, foi o desabar do mundo.


Sentou-se no sofá e adormeceu profundamente.


Acordou cedo e, felizmente, não sujou nada, o estômago  portou-se bem.



De repente, nem se lembrou da partida da Celeste, chamou por ela, e a falta de resposta deu-lhe luz à memória. Abalou mesmo!


Ele não era assim, bebia, como se diz, em sociedade, nada mais do que isso. Bebedeiras isso nunca!


*******
Foi num dia especial, faziam três anos de casados, ofereceu-lhe flores, fizeram uma festa a dois, foram jantar, ao restaurante preferido, e voltaram a casa enlevados para continuar mas, nunca lhe tinha acontecido, no melhor da festa o Horácio nada, mesmo nada, nega total.


Chorou, mesmo com lagrimas, e quase convulsivas, mas há coisas que o pranto não resolve.


Celeste foi compreensiva, animou, disse que era normal acontecer, já tinha lido, cansaço, stress, preocupações, mas era passageiro, não devia pensar nem empreender, deixar que tudo voltaria ao normal. Se volta-se a acontecer iam ao, médico, doutor Alegria, e ele resolvia o problema, sim era um pequeno problema, não iam pensar no assunto.


Mas ele não resolveu, fugiu, evitou, ia para a taberna, bebia e não pensava.

Chegava a casa arrastando o frustração e a bebedeira, caia no sofá e os problemas morriam com o sono.


De manhã fugia ao diálogo, adiava para mais tarde quando voltassem dos trabalhos.


*****


Agora estava só, até aqui fugia mas depois era a solidão que o levava.



Sai do trabalho e vai petiscar ao Chibo, com o petisco aquele tinto a que chamam vinho, depois é o inferno do caminho, dos tropeções, do praguejar com uma fechadura que não sabe estar quieta, depois uma casa vazia a cheirar a bafio, uma solidão que dói e uma saudade imensa.

Queria lutar, mas não tinha força era mais fácil assim, este deixa andar matava mas não o envergonhava.


Já pensou ir ao Doutor Alegria, jura que já pensou, mas não sabia o que dizer. Onde se viu chegar ao médico e ficar a torcer as mãos e as palavras não saírem.

Ou então ia dizer, senhor doutor, sempre deu mas, naquela noite, não deu nada. Que piada tinha isso, o médico ia pensar que o Horácio pirou dos miolos, ir com meias palavras, com enigmas, até iria pensar que estava no gozo.
Não conseguia, o melhor era beber uns canecos e deixar o mundo girar. 


Era sexta-feira, a tasca do Chibo estava cheia, amigos dos copos, hoje não faltavam. Foi uma noite e peras, na mesa chouriço assado, torresmos, azeitonas e pão, um pagava uma rodada, depois outro e mais outro, foi assim até que a terra deixou de girar, agora balouçava, parecia mesmo um baloiço.

Hoje a caminhada ia ser difícil, era um turbilhão, nada estava quieto, até os candeeiros dançavam na sua frente, as luzes pareciam cometas. Andou devagar, umas vezes no passeio, outras na estrada, confusão total, as pessoas quando o viam, mesmo ao longe, mudavam para o outro lado da rua.
Será que cheirava mal? Não! Todos os dias, antes de ir trabalhar, tomava um grande banho. São manias, cada um faz o que lhe apetece. Parou e ficou seguro a uma portada para ganhar coragem, mediu a distância, faltava pouco para chegar ao largo, mas parecia tão longe.


Mais uma aventura até à rotunda, ia caindo mas num gesto grotesco equilibrou-se numa perna e conseguiu ficar assente nos dois pés. Mais uns metros e, agora, era só atravessar.


Avançou e nem sequer olhou, um chiar de travões, alguém pelo ar que cai, com estrondo, três metros adiante.


O homem saltou do carro, aflito só gritava, matei o tipo, dei cabo do gajo, não tenho culpa ele atirou-se para a estrada!


O INEM não tardou, o homem estava mal tratado, mesmo inconsciente, mas vivo. 

********

Começou a abrir os olhos, era estranho não sabia onde estava, só se lembrava da tasca, se calhar morreu, pois estava  num escuro total, nem réstia de luz. Não deve ser o inferno embora tenha muitas dores, mas está confortável.



O braço direito não consegue mexer, está imobilizado. Passou a mão esquerda pelo rosto, está todo ligado, por isso não consegue ver, tem ligaduras até à ponta do nariz.


Uma pequena luz começa a brilhar no cérebro, foi isso, foi atropelado! Se calhar esta metido em sarilhos, ainda tem que pagar estragos nalgum carro. Era melhor ter morrido mesmo. Possa!


Sentiu uns passos muito suaves, pela voz devia ser uma enfermeira, perguntou como se sentia, disse que lhe ia tirar as ligaduras e, que amanhã, já podia receber visitas pois ia para a enfermaria.


Visitas, mas visitas de quem, a mulher deu à sola e os conhecidos só os da tasca e, desses, nem sequer conhecia os nomes.


A enfermeira. Era mesmo uma enfermeira, cortou adesivos e ligaduras, foi desenrolando devagarinho, até os olhos ficarem libertos, ele via mas não muito bem. A enfermeira explicou que à medida que fossem desinchando ia recuperando a visão, o braço estava partido, em dois lados, tinha que estar engessado e o tronco ligado por causa das costelas fracturadas.


O resto, disse ela, estava bem. Como se fosse pouco, a cara num bolo, um braço partido e três costelas fracturadas. Que lata o resto estava bem, como se ainda fosse pouco.
Perguntou-lhe quando podia ir para casa, disse que ainda era cedo o médico é que iria decidir mas, só, depois. 


No dia a seguir, levaram-no numa cama com rodas e deixaram-no numa enfermaria com mais três homens que não conhecia.


Um tinha caído de um andaime, partiu as duas pernas, outro estava tão ligado que só se lhe viam os olhos, caiu da mota a 120 quilómetros e o terceiro, um idoso de olhos azuis muito vivos, que apenas sorria. Nunca chegou  a saber o que tinha.


As visitas foram às três horas e, surpresa das surpresas, com um embrulho, na mão, apareceu a Celeste, linda, preocupada e com um sorriso tão encantador.



Deu-lhe, cuidadosamente, um beijo suave nos lábios. Depois chorou, disse do susto que apanhou quando a polícia telefonou a dizer do acidente.


Veio todos os dias, ao hospital, mas só hoje permitiram visitas, achava que tinha culpa do acidente, porque o tinha abandonado, mas tinha voltado para casa, agora tinha que prometer que se ia tratar.


Jurou que sim, logo que tivesse alta, ia ao doutor Alegria.


Dr. Alegria não, disse ela, tinha tudo tratado, falou com o médico do hospital e ele deu-lhe uma carta para o doutor Caramelo, um dos melhores andrologistas do país.


Horácio pensou abençoado atropelamento. Graças a Deus!



Afinal um acidente nem sempre é um desastre, nem um fim, pode ser um princípio.



Está todo partido, mas tudo vai endireitar, vai recuperar a sua vida.









15 comentários:

Vanuza Pantaleão disse...

Uma situação triste e dramática.
Grande abraço, Manuel!

Mirtes Stolze. disse...

Boa noite Manuel.
OS seus textos sempre me surpreende já sei que o final eu não imaginava.
Gosto muito de ler cada postagem sua. Sobre o assunto comentado, acho que todo casal passa por isso um dia, eles podem não comentar,mas com certeza acontece,acho que é normal eventualmente.Obrigada meu amigo pelo carinho e apoio.
Um feliz final de semana.
Abraços.

Unknown disse...

Obrigado por esta bela bebedeira.
Precisava de rir e fez-me bem ler e imaginar aquele caminhar de um lado para o outro e de trás para a frente.
Ah valente!...
Grande pinga...

Quanto mais bebem menos querem parar de beber.Nunca matam a sede.

Vanuza Pantaleão disse...

Gostei dos nomes dos médicos, Alegria e Caramelo, você sempre dá uns toques de humor nas coisas mais sérias.
Bom fim de semana!

chica disse...

Que pena que ele teve que ficar bêbado, ser atropelado, quase morrer pra só então dar-se conta de que poderia resolver com o Dr.caramelo,rs E Celeste ali estava ao seu lado pra fazer o doce,rs abração,chica

Evanir disse...

Mais um final de semana.
Nesse postei um pouco de mim
para você começar a me entender .
E quem sabe você também a partir
de hoje me veja com mais amor.
Uma vez por semana minha postagem
vai falar sobre mim.
È necessário falar um pouco de mim,
e acima de tudo acreditar na presença de
Deus na sua vida,
quando os caminhos se confundem é necessário voltar,
começar a vida tudo de novo independente da nossa idade.
Que , Deus te cubra de benção
principalmente de onde tudo parou.
Um abençoado final de semana.
Aceite o carinho que hoje te dou
beijos na sua alma linda.
E muita paz no seu coração ,
Evanir..

São disse...

Como sempre, uma estória bem engendrada e muito bem escrita.

Bons sonhos:)

Magia da Inês disse...

°º。✿⊱
Histórias como essas são bem reais, mas a Celeste nunca volta e o Dr.Caramelo nunca aparece.
Ótima história!
Bom domingo!
Ótima semana!
°º。✿⊱

SOL da Esteva disse...

Manuel
Acho que noutros tempos conheci alguém com estas características; só não sei se "acabou" atropelado.
Alguma vezes é bom haver um acontecimento que "empurra" a decisão para o ponto certo. Todo o mundo se sente culpado das indecisões que não "faziam nem deixavam fazer".
Um Conto para repensar.
As faltas de personalidade, os adiamentos, as indecisões, as vergonhas e o temor do ridículo só podem empurrar para o abaixamento da dignidade.
Muito nível, Amigo!
Parabéns.



Abraços


SOL

Janita disse...

Ora aqui está uma bela lição de vida, contada com a mestria de um escritor que conhece os meandros traiçoeiros, que podem arruinar um homem que não sabe encarar uma nega como algo que pode acontecer a qualquer um...!!

Passagens muito bem descritas que dão para sorrir, embora com tristeza!

Tudo está bem quando acaba bem...e o que eu gosto de finais felizes!! :)

Um abraço e parabéns, Manuel!

Flor de Lótus disse...

Oi,Manuel!Td bem?Fiquei aliviada que o recado que deixaste no meu blog anteriormente foi um engano, porque não tinha entendido a razão do recado,mas essas coisas acontecem.Que bom que o acidente serviu para que ele acordasse para vida, tudo tem uma razão maior.
Beijosss

Maria Luisa Adães disse...

Bem abençoado atropelamento...mas foi uma situação dura e funesta, isso foi.

O texto deu uma volta para dar a felicidade perdida.
Não é fácil. Nada é fácil, mas pode acontecer! E assim talhou dois destinos que tinham de se reencontrar.

Manuel, você deve ser pessoa que gosta de dar felicidade e escreve nesse sentido!Parabéns por ser generoso e tentar através do que escreve, nos dar um mundo melhor!

Muito bom,

maria luísa

Afrodite disse...


Ler os teus contos é como comer cerejas... nunca consigo ler um só.
(não fosse o adiantado da hora fazia-me a mais um!) :)

Os teus finais por vezes enganam-me... mas desta vez só não acertei na música!
(pois a que me veio à lembrança foi o "Chico Pinguinhas" da Tonicha!)
:))


Beijinhos tardios
(^^)

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

penso que não é ficção.

acho que há mitos casos desses por aí.

só não gostei dos nomes dos médicos.

mas isso nem é relevante.

parabéns .

:)

redonda disse...

Gostei muito desta história, da história em si e de como está escrita.
Cheguei aqui pelo link no blog da Afrodite para recolher uma pista.
Vou passar a seguir.
Gábi