quinta-feira, 26 de março de 2015

A máquina











Eu sei que ninguém me conhece, sou assim muito tímido e passo tão despercebido, que por vezes nem eu dou por mim próprio.

Acho que é uma questão hereditária, difícil de explicar, até poderá ser considerada como uma doença rara, mas não é. Aqueles, como eu, parecem muito infelizes, uma espécie de inexistentes. Mas não, porque são o futuro.

Diz a minha mãe, que o meu pai, era tal e qual o mesmo, talvez ainda mais subtil do que eu, viveu com ele e não se lembra de alguma vez o ter visto.
O problema não é nosso, tenho a certeza que o mal está em todos os outros, que não aguentam o nosso magnetismo e ficam possuídos de uma prosopagnosia total, não têm culpa mas não aguentam o nosso poder.
Poder? Disse poder, mas não é bem poder é muito mais do que isso, algo que vem de um futuro controlado por uma máquina, que já está instalada, e ninguém sabe que existe.
Ninguém não é, totalmente, verdade porque nós, os predestinados, sabemos. Temos que saber porque foi a nossa mente, superdotada, que a construiu.

Poucos de nós se lembram como tudo aconteceu, só alguns, os legítimos os originais, porque os outros  já são híbridos, que a máquina clonou, e daqui em diante muitos mais, vão engrossar a nossa legião de colonizadores.

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As coisas aconteceram porque tinham que acontecer, ou era assim ou seria o fim, o Armagedão, não propriamente como o que  bíblia nos apregoa, não é nenhuma luta entre o bem e o mal. É mais uma necessidade de assegurar a continuação porque o futuro já não é ali, está comprometido, a natureza criou e, os homens, destruíram.

Foi preciso materializar a máquina.

*****

A máquina é apenas um nome pois máquina, propriamente, não existe é algo difícil de explicar, talvez não seja difícil. O impossível será perceber.

Como se pode explicar, se nós próprios, os eleitos, temos dificuldade?

Mas, eu, como um, dos coordenadores, da dinastia da Nova Era, posso adiantar que a máquina é formada por bruuuuu, bem por brumuuu, por, mas estou bloqueado, não estou autorizado,  foram-me embotadas as memórias e mesmo que queira não sei explicar.
Fica assim, um dia, todos vão perceber.

Disse todos e não foi por acaso, é um aviso, pois não tarda vão ser todos prosopagnosiados, não sei se o termo é válido ou se acabei de criar um neologismo. Mas é uma das minhas virtudes, a criação.

As coisas vão começar, uma nova era está reservada a todos, quase todos, pois políticos e governantes estão excluídos, ficam na classe dos impuros, dos inaptos, impossíveis de reciclar, passam a
lixo, aliás, estão habituados, sempre o foram.

Os outros, estejam atentos, porque não tarda a transformação vai começar, e ninguém se vai aperceber.

Começa, por um alheamento, como se a vida fosse fácil e tudo tivesse uma explicação lógica.
Depois é facilidade, tudo existe e tudo parece estar à nossa disposição, basta pensar e acontece.

Vai ser lenta a mudança, mesmo muito lenta, quase imperceptível, não pode haver choques tudo, deve ser, muito natural.
Não vale a pena olhar, para o lado, na procura do que está  a ficar diferente, não vão notar, ainda não tem essa capacidade.

Mas não desesperem, porque um dia, quando se olharem ao espelho e a imagem que se reflectir vos for totalmente desconhecida, ai sim estão salvos, acabaram de entrar na nova dimensão, estão no futuro.

Serei eu, quando chegarem, o vosso anfitrião, vou ser eu a dizer:

-Sejam Bem-Vindos!




quinta-feira, 19 de março de 2015

A inimiga alemã








Já sentia um pouco a idade, eram os ossos, os malditos ossos que o atormentavam, o pior eram os joelhos, uma dor aguda e dificuldade em mover as pernas. Depois, conforme se ia mexendo as coisas compunham-se um bocadinho.


O neto dizia:

Vai aquecendo e melhora!

Se calhar tinha razão.

Já pediu ao filho, Afonso, que lhe mandasse vir uns daqueles comprimidos que anunciam na televisão, mas torto com era, dizia que eram charlatanices para apanhar o dinheiro aos papalvos.

O filho era um sovina, isso é que era, ficava-lhe com o dinheiro da pensão, era pouco mas era a sua pensão.

É verdade que não lhe faltava nada, até podia beber uma pinga, ou um café, no Zé da Esquina, que o filho deu ordem, para o que fosse, ele depois ia pagar.

Mas a mezinha, da televisão, dizia que era uma banha da cobra. Mas não é! O Marcelo toma e diz que está melhor, coxeia na mesma mas diz que já não tem dor, só não percebe uma coisa "se não lhe dói porque será que continua a coxear?". Quando o vir já lhe pergunta.

Há uma coisa que o preocupa, antes lembrava-se de tudo, mas mesmo de tudo, até sabia os dias em que os filhos e os netos faziam anos, nunca se esquecia.
Agora já lhe escapam muitas coisas. É verdade que tem 81 anos e, que depois que a sua Emília morreu, ficou muito abalado, mas ele sabia que as coisas eram mesmo assim, a pobrezinha era muito doente e aquela falta de ar não a ajudou nada, mesmo nada.
Um dia, coitada, sentiu-se mal, ainda a levaram para o hospital mas não havia nada a fazer.

Só não percebe, gostava muito da sua Emília, foram 52 anos de casamento mas não sentiu muito a sua morte. Foi mais o pensar que não tardava lhe podia calhar a vez.

Ontem foi dar uma volta, para desentorpecer as pernas, e não é que às tantas se perdeu.

Não sabe como fez aquilo e já estava a ficar preocupado quando ouviu:

-Então Tóino! Que anda a fazer para estas bandas?

Era a Benedita, não quis dar parte fraca, por isso disfarçou:

-Olha rapariga ando a estender as pernas e, agora já estava confuso, não costumo vir para estes lados.

-Ai Tóino, Tóino, que se passa contigo? Não tardava muito estavas no pinhal e ainda te perdias!

-Quem, eu? Achas que me perdia? Conheço estes caminhos como os dedos da minha mão. Estou só cansado, mais nada!

-Vá, anda comigo! Exclamou Benedita, sempre vamos acompanhados.

Voltou a casa, sentou-se no sofá e adormeceu. Foi o filho que o foi chamar:

-Então pai hoje não tem fome? Dorme e nem se lembra de jantar.

-Não, respondeu, não estou a dormir! Estava só a pensar na minha vida!

-Mas que se passa consigo? Insistiu o filho, a Benedita disse-me que andava perdido ao pé do pinhal do Cerco?

-Quem eu? Respondeu, deves estar a mangar comigo, não vou para esses sítios há muito tempo e não vejo a Benedita desde o funeral da tua mãe. Estás sempre na brincadeira! Vamos lá jantar porque tenho fome.


Manhã, não muito cedo, depois do pequeno-almoço, saiu para ir ao café do Zé da esquina, fazer um joguinho de dominó com quem lá estivesse. Fosse quem fosse, ia para ganhar e alguém ia pagar as minis.

A cabeça estava num reboliço, quando deu por ele estava numa estrada que não conhecia, devia ser nova pois nunca a tinha visto antes.
São coisas desses tipos da câmara, chegam mudam as ruas sem dizer nada e de repente uma pessoa pensa que tem que virar à direita, sempre foi assim, e chega e agora já é a esquerda, quando não é em frente.

Mas a estrada não está ali para nada, nem um carro, nem viva alma, foi desperdício de dinheiro fazer uma estrada onde não havia carros. Estes autarcas!

Ia atravessar aquelas arvores para encontrar, de certeza, uma rua conhecida, no outro lado, e não tardava estava na praça e daí já se orientava.

Ai esta cabeça! Quem havia de dizer que se ia desorientar.

Estava tanto calor e as pernas já reclamavam descanso, que ia sentar-se um bocadinho à sombra daquela árvore grande. Parecia uma oliveira, mas não se lembra de nenhum olival neste sítio. Mas está lá e se está é de alguém. De quem será?


Bem vai descansar um pouco, os torrões fazem roer o rabo mas dá para cochilar um bocadinho.

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Afonso estava a ficar preocupado, oito horas e o pai que era, sempre, o primeiro quando chegava a hora da janta sem aparecer.

Já foi ao café e dizem que o pai não apareceu por lá hoje, nem neste nem em nenhum dos poisos habituais.

Foi à polícia e aos bombeiros, pediu ajuda aos vizinhos mas hoje pouco puderam fazer a noite estava a cair e era difícil a busca, amanhã bem cedo iam dividir-se e fazer uma batida a todos os cantos e espreitar todos os poços.
Não era que pensassem em algum acto do Ti Tónio, mas podia ter havido alguma distracção, era melhor espreitar.

Ainda mal tinha rompido a madrugada e, o pessoal dividido por grupos e orientados pelos bombeiros, mais experientes, começaram a vasculhar todos os cantos.
O pinhal, como o mais provável, foi esquadrilhado de forma minuciosa, não houve moita nem recanto que ficasse por observar.
O Portela levou dois cães, bons farejadores, para ajudar mas os bichos andavam mais interessados nas rolas que esvoaçavam entre os pinheiros.

A noite não tardava e embora os homens se tenham revezado o desalento começava a invadir a moral de todos.
Os piores pensamentos surgiam e, em surdina, já se ouvia a hipótese de o velhote puder estar morto em algum canto, ao fim do dia arrefece e nem todos aguentam uma noite, sem comer e ao relento.

Às 8 horas era noite, nem com lanternas se conseguia enxergar no meio dos pinheiros e das urzes, era hora de desistir e recomeçar amanhã de manhã.

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Na casa do Afonso, também do Ti Tónio, o desalento era total, até os netos sempre na brincadeira, estavam num sossego que doía.

Jantaram mas parecia, mais, um velório pois só o barulho dos talheres quebrava o silêncio que enchia a casa.

Afonso recriminava-se, já devia ter notado que o pai não estava o mesmo, aqueles esquecimentos, aquela falta de orientação era indício de algo de não estar muito bem.

Começava a ter receio e só pedia a Deus que o encontrassem. Se possível bem.

Já passava da uma da madrugada quando duas pancadas fortes, na porta, tiraram Afonso dos seus pensamentos.
Ficou muito assustado, pensou o pior mas correu para ver quem batia.

Abriu a porta e, na sua frente, o pai sujo de terra e com ar muito cansado.

-Oh pai que susto pregou a toda a gente! Meu Deus obrigado.
Entra e vai descansar que eu trato de ti.
Mas por onde andastes perdido?

Olhou o filho sem perceber bem toda a aflição.

-A culpa é desses da Camara, que mudam as ruas, vê lá tu que até puseram um olival no caminho do café do Zé da Esquina. Entrei nele e se não fosse a tua mãe não conseguia dar com o caminho.
Foi ela que me encontrou e me trouxe para casa.
Não sei o que seria sem ela!





segunda-feira, 9 de março de 2015

As musas










Não me apetece escrever.

Tento, começo mas as ideias embotam e apenas resta um vazio.

Por vezes há uma que começa a brotar no meu cérebro, parece ir bem mas é ilusão, não tarda a ideia é apenas isso, uma ideia, que morre antes de germinar.

Foi ontem, talvez não fosse ontem, se calhar foi há mais dias, que comecei a imaginar a paixão, de uma pobre plebeia, por um príncipe loiro de fino bigodinho, que corria a galope num belo cavalo de crinas ao vento.
Mas foi um fogacho, o príncipe, afinal era um velho gordo, com um hálito capaz de exterminar um enxame de moscas.

A ideia, como podem ver, era boa mas os personagens resolveram aliar-se e tornar inglória a minha, já, pobre imaginação.

Penso, será cansaço? Mas ainda há muito pouco tempo as coisas fluíam como a água brota numa nascente, forte, fresca e cristalina.

De repente secou, a mente entrou numa espécie de greve intelectual, nada de tramas, comédias ou divagações sobre amores, mais ou menos possíveis.

Um deserto, não vale a pena tentar, basta um arremedo e os ouvidos entram num zunido, uns tinnitus, o cérebro se encolhe, os pensamentos se retraem e, a imaginação, fica tão obtusa como a do governante que está à frente deste país.

Já pensei que, possivelmente, é por imaginar, normalmente, moças de seios fartos, lábios carnudos e olhos com reflexos de magia, mas não, não era isso, são mesmo os fusíveis que fundiram.

Tentei imaginar uma cena com senhoras já matronas, com sonhos já apagados nas memórias dos tempos, maridos sentados no sofá na espera do descanso que não tarda.

Fui ardiloso, pensei que fui, mas puro engano, a escuridão manteve-se nem uma luzinha brilhou.

Por vezes olho o céu na esperança de um estrela despertar a minha inspiração, mas apenas um firmamento negro, pois as estrelas, tal como eu, também andam escondidas.

Foi ontem? Se calhar já foi há mais dias, mas pouco interessa para o caso. Fui espreitar a janela para tentar perceber se o frio já tinha desistido e vi uma loira.
Que espectáculo, cabelos abundantes espalhados pelas costas, em suaves caracóis, uma calça de licra, bem justa, delineava na perfeição uma bunda capaz de ressuscitar um morto.
Fiquei especado à espera de admirar o resto, imaginava já o farto busto e a doçura de um rosto angelical. Era agora, estava a voltar-se mas antes o não tivesse feito, pelo menos tinha mantido a minha imaginação ocupada. Mas não! Voltou-se, mesmo, para matar em definitivo a mina esperança. Era um homem, feio como um bode, barba rala, uma argola no nariz e borbulhas a salpicar aquela obra, já de si, tão imperfeita.

Não vale a pena, vou desistir e esperar o amanhã.

Mas o amanhã pode ser já hoje, por vezes acontece, as coisas dão a volta e a esperança renasce.
Está a acontecer, vem saltitante num doce bailado de sensualidade, as mamas erguidas, como lanças apontando aos céus, os cabelos de azeviche em dança demoníaca de tentação, os olhos rutilantes, iam hipnotizando quem tivesse a bênção de os olhar, os lábios lascivos eram morangos que aguçavam o apetite das bocas sequiosas.
Dizer que era linda era uma banalidade, pois ia para além do terrestre, só podia ser uma obra de um demónio, para tentar quem tivesse a leviandade de a olhar.

Eu estava no caminho, julguei, era o alvo daquela aparição que se aproximava de mim.
As pernas tremiam-me, o coração pulava numa autêntica doidice, a minha boca já sentia o sabor dos morangos, daqueles lábios. Estava tão próxima que fechei os olhos para tomar maior o encanto. Fiz mal!
Passou por mim e não parou.
Olhei desolado, a aparição foi cair nos braços doutra mulher, feia, varonil e desinteressante.
Deram as mãos e desapareceram enlevadas, cúmplices, nos carinhos e felizes nas intensões.

Desisto, não vale a pena, as musas só favorecem os poetas.




terça-feira, 3 de março de 2015

Ti Alfredo






Todos o tratavam por mestre Alfredo, mas nunca me habituei e para mim era, e será sempre, o Ti Alfredo. Forma maIs carinhosa. O mestre era um pouco o continuar duma profissão onde, diziam que era exímio, mas um pouco impessoal para quem fazia da vida uma festa.

Começou, quase com o nascer dos dentes, na oficina do pai e ali ficou até que as mãos o atraiçoaram e deixaram de obedecer. Artrite! Disseram os médicos, talvez seja mas eu acho que não é bem isso, talvez seja inveja dos deuses porque aquelas mãos faziam milagres, segundo diziam.

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Foi numas férias, de verão, em que nas noites de calor me sentava, com o meu avô, à porta da casa para aproveitar a ligeira aragem que, às vezes, aparecia para amenizar o calor do dia.

As pessoas, que retomavam do trabalho, passavam e deixavam um:

-Boa tarde! Arrastado no compasso das botas que entoavam no empedrado. 

Para um citadino tudo era estranho, todos se conheciam, e cumprimentavam como se fizessem parte da família.

Pois foi num desses serões que o homem apareceu, era conhecido do meu avô, amigo de longa data, talvez, amigos, desde sempre.

Olhou-me com ar interrogador.

-É o meu neto, disse o avô. Está de férias e gosta muita cá da aldeia!

Depois pediu-me para ir  buscar uma cadeira para o mestre Alfredo. Obedeci, com agrado, gostei do homem e estava curioso e, além disso, era mestre.

Olhei e escolhi um local onde o piso estivesse mais nivelado, coloquei a cadeira e disse-lhe:

-Pronto senhor Alfredo aqui está a cadeirinha.

-Qual é a tua graça? Perguntou-me.

Fiquei sem saber o que responder, para mim até achava que não tinha muita graça mas,  o meu avô, percebeu a minha timidez e veio em meu auxílio:

-Não entendestes o mestre Alfredo? Quando perguntou a tua graça queria saber como te chamas!

Muito intimidado respondi:

-Sou Marco! Peço desculpa, senhor Alfredo, mas não sabia que graça era o mesmo que nome.

Reparei melhor no homem, tinha uns olhos muito vivos e um leve tique que o fazia franzir com frequência a testa.
Alto e muito magro, mas o que mais me impressionou foram as mãos, muito deformadas, mal as podia abrir.
No resto parecia boa pessoa e engraçado no falar, e foi com muito espirito que me respondeu:

-Sabes Marco que, graça e nome, não são a mesma coisa mas é como se fossem. Aqui o Ti Alfredo vai explicar. Antes, os senhores importantes, eram tratados de vossa graça, por isso agora quando perguntamos qual é a sua graça estamos a fazer a pessoa importante. É só isso! Percebes?

Abanei a cabeça em sinal de concordância, enquanto fui pensando em voz alta:

-Já percebo porque é que o avô o chama de mestre. Foi professor, não foi?

Agora foi o meu avô a responder:

-Foi professor mas não como tu pensas, foi mestre na profissão que escolheu.

-Ah....respondi, o que é que fazia?

-Nada de especial, respondeu. O teu avô, grande amigo, exagera um pouco. Eu fazia uma espécie de casas, nada importante, mas fazia bem e com muita arte. Trabalhava a madeira, de forma muito especial, fazia em relevo desenhos onde deixava transparecer, um pouco, a personalidade, a profissão ou até os sonhos do futuro morador. Sabes Marco, abusei e o empurrar, constante, do formão acabaram por fazer o resto, os ossos das mãos foram deformando e o resultado é este.

Mostrou o que restava, não era bonito de ver, os dedos estavam como ramos secos e enrugados.

Estava impressionado, mas não sabia que dizer, arrisquei em laia de consolação:

-Pois é pena mas deixou muitas pessoas felizes, com as casas que lhes fez!

Pareceu-me sentir um sorriso, descolorido, mas deve ser confusão minha. Mas ouvi:

-Pois é Marco, não sei se ficaram felizes, ou não, porque nunca ninguém se queixou!

Agora vi bem, o homem olhou e sorriu para o avô.

Depois foi um desenrolar de histórias, sobre coisas e pessoas que eu não conhecia. 


Deu-me o sono, pedi licença e fui-me deitar.

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Ainda tinha oito dias de férias e, começava a ficar ansioso com o aproximar do fim. Era sempre assim, quando o tempo começava a fugir. Havia uma angústia que se apoderava de mim, só desejava que as horas fossem mais longas, que o Sol, apesar de impiedoso, não deixasse chegar a noite.

O serão, feito à porta, a ver quem passava e, a escutar, as histórias do Ti Alfredo, cheias de peripécias, coisas rocambolescas e, penso eu, muita invenção.

Não acreditava em tudo, acho que ele inventava para me manter entusiasmado, mas já tenho doze anos e percebo quando é verdade ou é inventado.

E ele inventava muita coisa. Mas tinha graça, lá isso tinha!

Os dias passaram sem quase dar por isso, um aperto no coração dizia-me que depois de amanhã me iriam meter na camioneta  da carreira com destino a Lisboa.

Era sempre assim, o motorista, ainda parente da família, tomava conta de mim, até à chegada onde alguém me iria esperar.

Foi mesmo na véspera, o meu avo chamou-me de lado, estava um pouco transtornado, nunca o tinha visto assim.
Segurou-me pelos ombros para me dizer:

-Não sabia se te devia dizer ou não, tive muitas dúvidas, uma parte queria mas outra dizia-me que não. Mas acho que és um rapaz, muito forte e muito inteligente, e não te quero enganar, por isso vou-te contar.
O Mestre Alfredo morreu, esta noite, ainda chamaram o médico mas nada havia a fazer, já era muito velho e estava muito doente.

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Foi estranho, não senti nada de especial, se era muito velho e estava doente era natural.

-Obrigado avô por me contar! Respondi. Eu gostava dele mas só o conhecia de agora, devia ser uma boa pessoa, além de ser um mestre. Eu vou pensar sempre nele, como Ti Alfredo, acho que ele gostava.
Só é pena porque agora já ninguém vai fazer as casinhas bonitas, nunca vi nenhuma, mas acho que deviam ser mesmo muito lindas.

Pareceu-me ver um sorriso, muito apagado, no semblante sempre sisudo, do meu avô, antes de me dizer:

-Sabes que ele, agora, vai numa das casinhas bonitas, como dizes? Antes de ficar com o problema, nas mãos, ele ainda fez a casinha para a sua última viagem. Tinha-a guardado debaixo da cama.

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Na altura não percebi bem, mas quando vinha na viagem foi como se uma luz se acendesse na minha cabeça. Senti um arrepio a percorrer-me o corpo e deixei escapar:

-Poça o homem fazia caixões! Sou mesmo parvo!


Tive sorte, estavam todos a dormir, ninguém ouviu o meu desabafo.